jdact
Constantinopla. Abril do ano de 1204
«(…) O mosteiro do Cristo Pantocrator, situado no
centro da cidade, era o local onde muitas das relíquias provenientes de
mosteiros vizinhos tinham sido depositadas para que ficassem guardadas num
lugar seguro, fora do alcance dos infiéis que acossavam aquelas terras como uma
ameaça constante. O abade Martín perguntou a vários homens onde se encontrava.
Bernardo e eu seguíamo-lo em silêncio, como se fôssemos a sua sombra. Quando
chegámos ao mosteiro, verificámos que as portas tinham sido arrombadas e que os
latinos corriam e saltavam de um lado para o outro com peças de ouro, pedras preciosas
e outros objectos sagrados num estado de embriaguez malvada que lhes alterava a
consciência. O abade não olhou para eles e, para meu grande desconcerto, em
nenhum momento os repreendeu pela sua atitude. Seguiu caminho até à igreja,
guardado pelos nossos passos temerosos. Quando chegou à sacristia, parou de repente.
No centro daquele espaço vimos um ancião, de barba comprida e com um ar
abatido. Estava de pé, imóvel. Virou-se para nós e olhou-nos sem surpresa, como
se esperasse a nossa chegada. Tinha os olhos pequenos e escuros, e alguns
cabelos brancos tentavam desesperadamente manter-se pegados ao seu crânio brilhante.
Manteve as mãos enfiadas nas mangas. O abade aproximou-se dele devagar, com um
olhar desafiante. A sua estatura e corpulência obrigaram o ancião a olhar para
cima. Apercebi-me, então, de que o corpo seco daquele homem tremia sob o manto
escuro do seu hábito desfiado pelo tempo. Onde guardais as relíquias?, rugiu o
abade, engrossando a voz.
Porém, o ancião mal reagiu,
encolhendo-se como se quisesse desaparecer. Dizei-me onde estão as relíquias
que guardais ou juro-vos, velho infiel, que sereis castigado com a morte! O
homem descerrou os lábios e murmurou algo num latim entrecortado, que não fui
capaz de compreender. Depois, retirou a mão da manga e apontou para um baú
enorme que havia ao fundo da sacristia. O abade passou diante dele com tamanho
ímpeto que quase o derrubou. Fui eu quem o susteve e os seus olhos assustados e
cansados ficaram-me gravados na retina. O meu coração batia com força,
embargado pela sensação de culpa que ardia na minha consciência ferida. O baú
estava fechado à chave e o abade virou-se na nossa direcção.
As chaves?, atirou, olhando para
o ancião, mas este respondeu-lhe com um encolher de ombros. Umberto, Bernardo,
vinde aqui e abri isto. Temos de ver o que é que está aqui escondido antes que aqueles
energúmenos o descubram. Apenas lhes interessam o ouro e as pedras preciosas,
mas as relíquias pertencem à Igreja!
Preparámo-nos para arrombar a fechadura
tosca que impedia a abertura do baú, servindo-nos de um candelabro de prata
como alavanca. As minhas mãos trémulas moviam-se atabalhoadas, pois fui tomado
por uma sensação de falta de ar ao compreender que eu próprio ia participar
naquele saque espantoso. Depois de várias tentativas, perante o ar impaciente
do abade e o olhar afastado do ancião, a fechadura saltou e pudemos abrir a
tampa de madeira. No interior, encontrámos vestes ricas, dedicadas à liturgia,
as quais foram revoltas sem nenhum cuidado pelas mãos nervosas do abade até
estas descobrirem, quase no fundo do baú, uma caixa de prata com motivos de
prata magnificamente esculpidos. Era uma peça muito bonita, feita para guardar alguma
coisa valiosa. O abade pegou nela e voltou-se para o ancião, com um ar solene. O
que está aqui dentro?
O
ancião aproximou-se e respondeu-lhe: é o dedo do apóstolo Tomé Dídimo...,
disse, olhando-o de soslaio, com uma expressão que me pareceu de um certo
cinismo. Faz milagres extraordinários a quem a ele reza com fé cega..., mas só aos
que sentem verdadeira fé... A voz do velho monge era rouca e cavernosa, e
falava num latim que me custava a compreender. Vamos levá-lo!, disse o abade,
em tom firme. Aqui não está seguro. Poderia perder-se... O meu coração começou
a bater com tanta força que pensei que ia desmaiar. Mas padre..., atrevi-me a
dizer, numa tentativa vã de corrigir a sua conduta e a minha própria
consciência, é um sacrilégio; não podemos... As palavras saíram-me desajeitadas
dos lábios. Balbuciando, olhei para o abade e para o cofre, que ele segurava
como quem tinha nas mãos um tesouro sagrado. Tens razão, Umberto, é um
sacrilégio, mas cometemo-lo por uma causa santa, respondeu-me, virando-se para
mim com uma atitude condescendente. Se deixássemos aqui esta peça, os infiéis
poderiam destruí-la ou fazê-la desaparecer..., para não dizer que poderia ir
parar às mãos destes cavaleiros latinos enlouquecidos, que a venderiam a quem
mais lhes pagasse, sem pensarem, em momento algum, no valor sagrado que tem
para a nossa Igreja». In Paloma Shanchez-Garnica, A Brisa do Oriente,
2009, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2012, ISBN
978-989-637-411-2.
Cortesia
SEmergência/JDACT