domingo, 6 de janeiro de 2019

A Filha do Sangue. Anne Bishop. «O mundo rodopia e se desfaz em estilhaços. Nos seus fragmentos, vislumbro aquelas que foram minhas Irmãs precipitando-se das mesas, aterrorizadas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Terreille
«(…) Já faz alguns dias que venho ouvindo um tipo estranho de trovão, um chamado distante. Ontem à noite, rendi-me à loucura para poder recuperar a minha Arte de Viúva Negra, uma feiticeira das assembleias da Ampulheta. Ontem à noite, teci uma teia emaranhada para ver os sonhos e visões. Hoje, os destinos não serão revelados. Só tenho forças para dizer isto uma única vez. Mas, antes de falar, preciso ter a certeza de que aqueles que precisam ouvir estão na sala. Aguardo. Não reparam. Os copos se enchem e voltam a se encher enquanto luto para me manter nos limites do Reino Distorcido. Ah, ali está ele. Daemon Sadi, do Território denominado Hayll. É lindo, frio, cruel. Tem um sorriso sedutor e um corpo que as mulheres desejam tocar e pelo qual desejam ser acariciadas, mas é dominado por uma raiva fria e insaciável. Quando falam sobre o seu desempenho no quarto, as palavras que as Senhoras murmuram são prazer excruciante. Não duvido que seja sádico o suficiente para misturar dor e prazer em partes iguais, mas foi sempre gentil comigo, e esta noite envio-lhe um pequeno raio de esperança. Mais do que qualquer um jamais ofereceu a ele.
Os Senhores e Senhoras estão inquietos. Não costumo demorar tanto para começar a falar. A agitação e o aborrecimento estão instalados, mas eu aguardo. Depois desta noite, não fará qualquer diferença. Ali está o outro, no canto oposto da sala. Lucivar Yaslana, o mestiço eyrieno do Território denominado Askavi. Hayll não tem qualquer afecto por Askavi, nem Askavi por Hayll, mas Daemon e Lucivar são atraídos um pelo outro sem compreenderem o motivo, tão enredadas estão as suas vidas que não se podem separar. Amigos inquietos, combateram batalhas lendárias e destruíram tantas cortes que os Sangue ficam receosos quando estão juntos, não importa por quanto tempo.
Levanto as mãos e deixo-as cair no colo. Daemon observa-me. Não mudou nada, mas sei que aguarda e ouve. E, uma vez que ele ouve, Lucivar também ouve. Ela está chegando. A princípio, não percebem que falei. Quando entendem as palavras, começam os sussurros irritados. Vagabunda estúpida, grita alguém. Diga-me quem irei amar esta noite. O que importa?, respondo. Ela está chegando. O Reino de Terreille será dilacerado pela sua própria e estúpida ganância. Os que sobreviverem irão tornar-se servos, mas serão poucos. Estou afastando-me dos limites. Pelo meu rosto escorrem lágrimas de frustração. Ainda não, doces Trevas, ainda não. Tenho que dizer isso.
Daemon ajoelha-se a meu lado, as suas mãos sobre as minhas. Dirijo-me a ele, somente a ele, e, através dele, a Lucivar. Os Sangue de Terreille corrompem as antigas tradições, zombam de tudo o que somos. Com um gesto, indico aqueles actualmente no poder. Distorcem os factos como lhes convém. Vestem-se de maneira elegante e fingem. Enfeitam-se com Jóias dos Sangue, mas não compreendem o que significa ser Sangue. Dizem que honram as Trevas, mas não é verdade. Não honram nada, a não ser as próprias ambições. Os Sangue foram criados para servir como protectores dos Reinos. Por isso recebemos o nosso poder. Por isso descendemos dos povos de todos os Territórios, ainda que deles estejamos separados. A corrupção da nossa essência não pode continuar. Chegará o dia em que a dívida será cobrada e os Sangue terão de responder por aquilo que se tornaram.
São estes Sangue que reinam, Tersa, diz Daemon com tristeza. Quem resta para cobrar a dívida? Escravos bastardos como eu? Estou-me afastando rapidamente. As minhas unhas cravam-se nas mãos de Daemon até tirar sangue, mas ele não me repele. Baixo a voz. Ele se esforça para me ouvir. Há muito, muito tempo as Trevas têm um Príncipe. Agora, a Rainha está a caminho. Pode levar décadas, até séculos, mas está a caminho. Com o queixo, aponto os Senhores e Senhoras sentados às mesas. Quando isso acontecer, eles já serão pó, mas você e o eyrieno estarão aqui para servir. Seus olhos dourados enchem-se de frustração. Que Rainha? Quem está a caminho? O mito vivo, murmuro. Os sonhos tornados realidade. O choque é substituído por um desejo intenso. Tem certeza? A sala é um turbilhão de névoa. Só Daemon continua nítido a meus olhos. Mas ele é a única coisa de que preciso. Eu a vi na teia emaranhada, Daemon. Eu a vi.
Estou cansada demais para me manter no mundo real, mas, obstinadamente, continuo agarrando as suas mãos para uma última revelação: o eyrieno, Daemon. Ele olha de relance para Lucivar. O que é que tem? É seu irmão. Vocês são filhos do mesmo pai. Não conseguindo mais aguentar, mergulho na loucura apelidada de Reino Distorcido. Vou caindo por entre os fragmentos de mim mesma. O mundo rodopia e se desfaz em estilhaços. Nos seus fragmentos, vislumbro aquelas que foram minhas Irmãs precipitando-se das mesas, aterrorizadas e decididas, e a mão de Daemon estendida, casualmente, destruindo o frágil fio de seda de aranha de minha teia emaranhada.
Não é possível reconstruir uma teia emaranhada. As Viúvas Negras de Terreille podem passar anos assustadores tentando, mas será em vão. A teia não será a mesma e não conseguirão ver o que vi. No mundo cinza, lá em cima, posso ouvir-me uivando, numa gargalhada. Muito abaixo de mim, no abismo psíquico que faz parte das Trevas, ouço um outro uivo, repleto de alegria e de dor, de raiva e de celebração. Não é mais uma feiticeira que está a caminho, minhas tolas Irmãs, é a Feiticeira». In Anne Bishop, A Filha do Sangue, Jóias Negras, 1998, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-972-883-977-2.

Cortesia de SaídadeEmergência/JDACT