terça-feira, 8 de janeiro de 2019

O Primeiro Herói. José C. Oliveira. «Conde Henrique toma o menino, olha-o inteiro, chocado com o contraste brutal entre a perfeição invulgar do pequeno corpo e a horrenda perna enfezada. Sem conseguir articular palavra…»

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Afonso Henriques
Nascimento de uma nação...
«(…) Abrem-se as portas do aposento, aparece o conde Henrique, ofegante, desalinhado, olhos imediatamente achados nos da mulher na cama, a felicidade e o reconhecimento estampados no rosto. No leito, a mulher sorri-lhe feliz, estende-lhe os braços num convite. O conde Henrique não lhe perde os olhos enquanto avança, um passo após outro, na fruição de cada momento que ainda o separa da que lhe deu um herdeiro: Teresa, minha mulher. Tomai-me os braços, senhor meu, que muita precisão têm de descansar nos vossos. Ele apressa-se a tomar-lhe as mãos, senta-se na cama, mira-a, abraça-a. Os dois enlevam-se na certeza dum futuro que há muito desesperavam de alcançar. O conde ordena às aias que saiam, elas apressam-se a obedecer, esvoaçam pelo aposento e saem. Sozinhos, Henrique, mais feliz que nunca, afaga o rosto de Teresa, beija-a. Os dois estão radiantes. Teresa de Leão sorri, esforça-se por que o entusiasmo se lhe sobreponha à fraqueza que sente, quer corresponder ao entusiasmo do marido, é uma mulher realizada. Consegue afirmar, exangue, calorosa: é um menino, senhor meu marido, ó o varão que tanto haveis esperado para o vosso trono..., é o vosso filho, Afonso Henriques!
À porta do quarto aparece um homem, tem o bebé nos braços. Parou, parece que o chão lhe tomou os pés sem tenção de lhos largar, as vestes de físico da corte marcam-lhe bem a imobilidade da silhueta. O conde vê-o parado na moldura da porta, incompreensível na hesitação, despropositada imobilidade aquela, com o varão do Condado nos braços. Ordena-lhe, premente, que se aproxime: vinde, vinde rápido, então?! O físico hesita mas acaba por dar um passo e depois outro, lentamente, como se arrastasse consigo o que não devia. Mas apressai-vos, homem! Se assim me trazeis a luz do Condado e de nós todos, como me traríeis vós a tragédia?
As suas palavras provocam o oposto do pretendido, o físico imobiliza-se, expressão indecifrável que a penumbra do aposento só deixa adivinhar. Exasperado, o conde Henrique corre para ele e toma-lhe o bebé, abre os panos que o envolvem, na confirmação urgente do sexo, o largo sorriso amplia-se-lhe na cara. Regressa à cama e a Teresa e é ele que lhe mostra o menino, tão orgulhoso como ela. Deposita-lho no colo, o recém-nascido reconhece o corpo que o gerou e aninha-se, os dois miram a descoberta do futuro do Condado à medida que o conde o desnuda com as mãos talhadas por outras tarefas menos gentis.
Caem os panos restantes, o pequeno corpo exposto, inteiro, fere-os em lugar de os enlevar. Os sorrisos esvaem-se-lhes até ao estupor, onde acaba por alastrar o temor, logo seguido do desespero. Dona Teresa já fugiu com os olhos num esgar de repulsa, afasta de si o bebé, empurra-o para o lado numa recusa desesperada do inevitável. O menino é um bebé perfeito, excepto por uma das pernas, torta, raquítica, mais pequena que a outra, sem préstimo para cumprir o que conde Henrique sonhou e o Condado precisa e espera, e que contrasta inerte com os bracinhos e os olhos que mal vêem pedindo o conforto do corpo da mãe.
Conde Henrique toma o menino, olha-o inteiro, chocado com o contraste brutal entre a perfeição invulgar do pequeno corpo e a horrenda perna enfezada. Sem conseguir articular palavra, fulmina com o olhar o físico, que parece diminuir de estatura para logo depois olhar o Alto, numa revolta que só alguns desesperados se atrevem a mostrar perante o Criador. A quem tanto ele rogou a graça da expansão do seu Condado, precisamente ao serviço d’Ele.
O futuro conhece-o agora quando antes só o antevia, esperançoso num Condado crescido contra os infiéis sarracenos. Nada lhe resta agora do que acalentou. Desata-se-lhe no estômago o tumulto, enquanto levanta o menino acima da cabeça e inicia um longo urro que enche o aposento e se propaga pelos corredores e salas do castelo. Teresa de Leão tudo viu e vê em silêncio, o temor estampado na face belíssima, as mãos trementes levantando os lençóis até que a cubram por completo». In José Carlos Oliveira, D. Afonso Henriques, O Primeiro Herói, 2016, Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-419-0.
                           
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