segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

As Princesas de Córdova. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Cavalgou até lá, verificando que estava aberto. Como não viu ninguém, entrou a trote, só parando dentro do perímetro do palácio»

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As Princesas de Córdova. Silves, 1145
Córdova, Fevereiro de 1145
«(…)
Filha, ide para a esquerda.
As mais duras lutas decorriam próximo do portão principal do Azzahrat, mas Zaida recordou-se de que existia outro, mais pequeno, para onde a voz da mãe a mandava. Cavalgou até lá, verificando que estava aberto. Como não viu ninguém, entrou a trote, só parando dentro do perímetro do palácio.
Um vasto pomar de laranjeiras apresentava-se à sua frente e atravessou-o lentamente, enquanto Maryam se entusiasmava: mamã, naranjas! Dá uma! Zaida desceu do cavalo para apanhar um fruto. Era redondo, largo, uma bola de cor. Sorriu. Como gostava daquelas laranjas, quantas vezes viera ali com a irmã e a mãe, Zulmira, para as colher e saborear!
Filha, dói-me o peito de saudades.
Ofereceu um primeiro gomo à filha, que o comeu, pingos a escorrerem-lhe pelos cantos da boca, rindo satisfeita. Olhou à sua volta, mas dali não via nada, cercada pelas laranjeiras. O rumor das lutas persistia. Voltou a montar e atravessaram o pomar na diagonal, até chegarem a um espaço repleto de margaridas e mil outras flores. Eram o jardim da sua mãe, que esta plantara com dedicação. Continuam bonitas, as flores da avó!, disse à filha. Desmontou novamente, levando pela rédea o cavalo, onde Maryam permanecia, até chegar a um portal, para lá do qual se via um pátio.
Filha, tende cuidado!
Devagar, atrelou o cavalo a uma árvore e desceu Maryam. O local parecia deserto, mas permaneceu parada, enquanto escutava à sua direita o tilintar dos alfanges. Deduziu que talvez Ibn Qasi já tivesse entrado no Azzahrat, mas de repente alarmou-se, quando ouviu um súbito grito de mulher.
Filha, é a vossa irmã!
Impelida por forca maior do que a dela, atravessou o portal com Maryam, mas mal entrou no pátio percebeu que cometera um erro grave, quando viu surgir à sua frente um grupo de soldados de Ismar, armados até aos dentes; e à sua direita, praticamente no mesmo instante, Ibn Qasi e os seus homens. Mãe!, gemeu Maryam, assustada. Zaida escondeu-a atrás dela, enquanto notava que os soldados estavam fixados uns nos outros. Não a haviam visto, por isso tentou recuar para se esconder, só que nesse momento ouviu novo grito e viu gente a correr, ao fundo, à sua esquerda. Fátima, Abu Zhakaria, Mem e Chamoa fugiam do palácio, e uma voz, que não parecia dela, nasceu-lhe na garganta: Mem!, gritou. Aterrada, verificou que o almocreve não a ouvira, ia fugir sem saber que ela estava ali! Só que infelizmente todos os soldados a tinham finalmente visto. Tanto os de Ismar, à sua frente, como os de Ibn Qasi, do lado direito, pararam espantados com a visão de uma mulher com uma criança pela mão, a gritar um nome desconhecido. Houve um momento de suspensão geral, até que se ouviu uma voz, vinda do contingente dos defensores do palácio. Princesa Zaida!
Um homem avançou, à frente dos cordoveses. Era Ismar, de turbante à cabeça e alfange na mão. Bem-vinda ao Azzahrat! De súbito, outra voz levantou-se à sua direita. Zaida, fugi!
lbn Qasi deu-lhe uma ordem imperativa e alarmada. Contudo, ela não conseguiu mexer-se. Os pés não respondiam, a tensão bloqueava-a. Limitou-se a agarrar na filha, que ouvira o pai e, ao vê-lo de espada na mão, deixara cair no chão um último gomo de laranja. Fiz mal em casar com Raimunda!, gritou o príncipe Ismar. Sois muito mais bela e fértil! Zaida continuava petrificada, mas não era pavor o que sentia. O príncipe de Córdova estava demasiado calmo, aquilo era uma cilada. Quereis casar-vos comigo, bela Zaida?, provocou Ismar. Ides ficar viúva...
A reacção de Ibn Qasi foi a prevista. Avançou, enfurecido, seguido pelos seus soldados, mas Ismar nem se mexeu. E não o fez porque ouviu-se ao longe uma trombeta, cujo som inesperado provocou uma imediata palidez em Ibn Qasi, enquanto Ismar desatava a rir. Eis o som da traição de Ibn Wasir, o som do vosso fim, estúpido sufi! Um pesado silêncio invadiu o claustro, até que apareceu aos gritos um soldado de Ibn Qasi, anunciando que Ibn Wasir havia atacado a rectaguarda das tropas do sufi». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT