domingo, 27 de janeiro de 2019

A Criada do conde Henrique. 1147. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Ao contrário de mim, que no momento ainda nada sabia, Afonso Henriques não se surpreendeu com a eliminação do templário, pois não ignorava que eram essas as instruções da bruxa»

jdact

A Criada do conde Henrique. 1147
Coimbra, Outubro de 1147
«(…) Ao chegarem ao acampamento flamengo, viram as fogueiras crepitando, mas também ouviram gritos. Algo se passava, havia dois corpos espetados em estacas e uma matula de cruzados cercava um pequeno grupo de pessoas. Vamos!, gritou Afonso Henriques, esporeando o Sultão. Quando o rei de Portugal se aproximou de nós, um primeiro olhar tranquilizou-o: Zaida, Mem e eu estávamos vivos, Ramiro deitado na padiola e Raimunda ao lado dele. Mas o seu rosto empalideceu quando viu que o primeiro dos empalados era o antigo governador de Santarém, sendo o segundo Malik, que havia sido morto há pouco tempo. Quem matou o wali?, perguntou. Esclareci o meu amigo, que fez um curto elogio fúnebre de Abu Zhakaria, furibundo por o terem executado. Ainda para mais, com a sua morte fora quebrada a palavra dada aos anciãos lisboetas, que agora podiam recusar a rendição.
E se a cidade continuar a lutar?, questionou o rei. Giraldo justificou-se: Malik e Zhakaria eram dispensáveis, pois Ramiro, Raimunda, Zaida e o feddayin ainda estavam vivos. O Mem pode ser o quinto refém! Este cerrou os olhos, furioso, mas Afonso Henriques, que entretanto desmontara, perguntou a Giraldo: a quem deveis lealdade? Bati-me por vós!, ripostou o outro, depois de um estremecimento. Mas sei que Mem é um traidor! O meu melhor amigo aproximou-se dele. O rei sou eu. Ajoelhai a meus pés e jurai-me lealdade. Giraldo empalideceu, humilhado em frente dos novos amigos. Fui dos primeiros a entrarem na cidade..., lembrou. Afonso Henriques não o deixou continuar. Ajoelhai!
Contrariado, Giraldo genuflectiu e baixou a cabeça, murmurando uma jura ao rei de Portugal, ouvida já por Hervey Glanville, que fingira acordar com o rebuliço. Que se passa?, perguntou o sonso condestável inglês. Confrontado pelo meu melhor amigo, enxotou as culpas das atrocidades para os seus homens, em cujos corações ainda não se finara o ódio aos infiéis. Certamente por causa da bebida, haviam perdido a lucidez, matando dois dos mouros que ali estavam, crime pelo qual seriam punidos.
Os reféns não podiam ser mortos!, ripostou Afonso Henriques. E a princesa Zaida é minha convidada. Não sabia disto!, mentiu Glanville, apontando para os corpos empalados. Expus a sua falsidade. O inglês aprovara a morte de Zhakaria e Malik, e por isso o rei de Portugal ordenou que os reféns fossem imediatamente levados para o acampamento portucalense. No dia seguinte, as chefias cristãs estabeleceriam novas regras.
Mas..., balbuciou Glanville. Os seus homens já o pressionavam, batendo com as espadas no chão. Aquela desfeita desonrosa enraivecia-os. Tínhamos de partir depressa, avisei o meu melhor amigo, pois Glanville era escorregadio como uma enguia e os Vítulo uns perigosos brutos. Esperai, ripostou-me Afonso Henriques. Passando por Giraldo, que permanecia ajoelhado, aproximou-se da padiola onde gemia Ramiro. Cuidado..., murmurou Chamoa, atrás de mim. Avancei para próximo de Raimunda. Com a espada apontada, ameacei-a de morte, mas a bruxa nem piou. A Lança de Cristo está escondida na mina da Adiça?, perguntou Afonso Henriques a Ramiro. O desgraçado moribundo era um destroço humano. O rei concluiu que ele estava condenado e deu ordens para que quatro soldados carregassem a padiola, enquanto outros retiravam das varas Zhakaria e Malik, que tinham de ser enterrados com dignidade.
Vamos!, ordenou Afonso Henriques. Segui-o, vigiando pelo canto do olho Raimunda, que acarinhava o doente. Ao passar por Giraldo, reparei que lhe brilhavam os olhos, mas só dias depois soube porquê. No momento, apenas ouvi um grito. A bruxa! Chamoa apontava na direcção de Raimunda e vi um punhal na mão desta. Julgando que o ia lançar contra Afonso Henriques, coloquei-me na possível trajectória da arma, entre a bruxa e o rei. Contudo, Raimunda fez o que eu não esperava: cortou a garganta de Ramiro. Mer…!, rosnei.
Ao contrário de mim, que no momento ainda nada sabia, Afonso Henriques não se surpreendeu com a eliminação do templário, pois não ignorava que eram essas as instruções da bruxa. O imperador dos Cinco Reinos, o seu primo Afonso VII, conseguira matar o meio-irmão. Cuidado!, voltou a gritar Chamoa. Sohba, a avó de Raimunda, costumava usar bolas de fogo quando se sentia encurralada. E, na mão direita da bruxa, a minha cunhada viu aparecer uma dessas pequenas esferas, que logo voou e aterrou próximo dos meus pés, libertando enormes labaredas que me cegaram e deitaram ao chão, bem como a Afonso Henriques. O rei de Portugal a cair foi a última coisa que vi antes de tudo ficar negro». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT