«(…) Tento deixar para trás essa memória
e, enxugando as lágrimas, vislumbro, sob as abóbadas sumptuosas da sala, pendurados
das paredes caiadas, alguns panos de ouro da minha mãe que representam a vida e
a coroação da Virgem, mas os meus olhos, carregados de pranto, não conseguem olhá-los.
Na minha alma, guardo apenas boas recordações dela... Graças ao muro invisível erigido,
pelo seu carinho, à minha volta, consegui suportar o meu triste destino de infanta
de Espanha e, graças à minha precoce presença, costumava recordar-mo com frequência,
ela conseguiu resistir ao sofrimento causado pela morte de meu pai.
Recordo-a como uma imagem viva da
desolação. Sempre vestida de negro e com o pensamento alheado pela presença impalpável
e perpétua do seu eternamente jovem esposo morto. A desdita e o desconsolo que
arrastava consigo eram duas asas de chumbo que a impediam de levantar voo. A sua
viuvez aos vinte e sete anos roubara-lhe as rédeas da alegria. Da sua boca já não
saía o riso fresco e espontâneo que tanto seduzia meu pai quando era uma despreocupada
arquiduquesa na corte de Borgonha. Em Tordesilhas, sentia que meu avô a tinha amordaçado,
humilhado, esquecido, e parecia afundar-se a pouco e pouco num abismo que a ia esmagando
cada vez mais fundo. Apenas com serenidade conseguia dominar aquela sensação estranha
que a embargava. Era como se uma mão invisível a empurrasse involuntariamente para
o fundo e, sem conseguir libertar-se dela, fosse caindo sem poder parar.
Absorta na sua dor e esmagada
pelas incontáveis dívidas que meu pai lhe havia deixado, o desassossego encarregava-se
de que não tivesse paz. Quando Filipe de Habsburgo morreu, as arcas reais estavam
vazias e, face à grave situação, o seu séquito flamengo reclamou o pagamento
dos salários em dívida há seis meses. Aqueles nobres tinham o firme propósito de
regressar à sua terra, mas, pressentindo as dificuldades económicas que minha
mãe teria em resolver as suas dificuldades pecuniárias, os ilustres flamengos, entre
os quais se encontravam o conde de Nassau e Floris van Egmont, duque de Borgonha,
o conde de Büren e Leederman, o senhor de Ijsselstein e de San Maartensdilk, embarcaram
no porto de Bilbau, levando apressadamente consigo os principais pertences e os
maiores tesouros do património de meu pai. O resto, o que ficou em Espanha, foi
roubado, dividido e malbaratado pela outra parte do cortejo, que, desejoso de obter
o dinheiro necessário para regressar à Flandres, concluiu a obra de despojamento.
Tudo quanto pertencia a meu pai foi
usurpado. Para a minha mãe e para nós, seus filhos, não deixaram nada, nenhuma recordação
visível de que nos pudéssemos comprazer ao chorá-lo, as suas jóias, os seus luxuosos
trajes, a sua baixela de ouro e prata, os seus móveis, as suas tapeçarias...
Tudo desapareceu. Restou apenas o seu corpo embalsamado, e, perante o receio de
que aqueles flamengos também o profanassem, minha mãe mandou instalar à volta do
féretro uma escolta permanente, vinte e quatro horas por dia.
O reino ardia em discórdias. Meu avô,
o rei de Aragão, Fernando, o Católico, e o arcebispo Cisneros eram quem conduzia
as rédeas do poder em Castela. Impunham a sua vontade e manuseavam arbitrariamente
as potestades de minha mãe, enquanto ela, angustiada pelo peso insondável da
solidão, dava cumprimento à última promessa, feita de joelhos frente ao leito de
meu pai moribundo, de levar o seu amado corpo para as terras do Sul para o enterrar
em Granada. Todas estas recordações sucederam há já muitos anos e, embora tenha
passado muito tempo e hoje me encontre nas verdes terras de Portugal, nunca as pude
esquecer. Um ventinho frio entra pela janela entreaberta e acaricia-me o rosto,
tal como o fazia em Tordesilhas, quando, empoleirada atrás das grades, via passar
o Douro rumorejando por entre os álamos. Hoje faço setenta anos e há quase três
lustros que me encontro recolhida por minha própria vontade neste mosteiro». In
Yolanda Scheuber, Catarina de Habsburgo, Rainha de Portugal, Ediciones
Nowtilus, 2011, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2013, ISBN
978-972-462-077-0.
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