A intriga de Compostela 1140-1142
Arcos
de Valdevez. Março de 1141
«(…) Um ferimento doloroso faz
nascer num homem alguma prudência, mesmo quando ele é um grande guerreiro. Músculos
rasgam-se, sangue vermelho escorre, o sentimento de invulnerabilidade esfuma-se
e o convencimento da imortalidade sofre um rombo. Até um valente, como Afonso
Henriques, anota finalmente o perigo de um dia a Providência lhe falhar. Num confronto
perto de Límia, o príncipe de Portugal foi ferido no braço direito por uma lança,
o que o incapacitou para continuar a levantar no ar a sua famosa espada, a
Tormenta, que deixou cair pela primeira e única vez. Graças a Deus, a mazela
não era grave e o único sinal da sua existência foi um trapo a rodeá-la nas
semanas seguintes. É certo que o príncipe ficou limitado nos movimentos, mas quem
o olhasse nem dava por isso, pois cavalgava como dantes. A prudência foi o único
sinal da mudança que aconteceu.
Dias depois, soubemos que os exércitos
do imperador chegavam. Recuámos, voltámos a atravessar o rio Minho e fomos esperar
Afonso VII perto de Arcos de Valdevez, onde instalámos o nosso acampamento. Entre
os portucalenses, havia uma vontade forte de luta em campo aberto, mas apercebi-me
de que Afonso Henriques considerava outra hipótese. Foi Chamoa, vinda à pressa de
Guimarães logo que soube da ferida, quem me anunciou as novidades. Vai propor um
bafordo ao imperador. Para nossa sorte, tal intenção encontrou logo eco em Afonso
VII. Nesse invernoso princípio de ano, os dois primos direitos revelaram as supremas
qualidades que os haveriam de tornar nos mais célebres monarcas da região
durante muito tempo. Os grandes reis são também os que pressentem o momento
certo, o tempo da luta e o da paz. Tanto para Afonso VII como para Afonso Henriques,
uma confrontação violenta era indesejada. O imperador andava entusiasmado com as
invasões da Andaluzia muçulmana, e Afonso Henriques sentira pela primeira vez a
dor. Para quê uma batalha se podiam decidir as pendências num torneio?
Entre finais de Fevereiro e os primeiros
dias de Março, o que aconteceu, portanto, em Arcos de Valdevez foram jogos de guerra,
combates individuais entre cavaleiros e concursos de flechas, que evitaram uma inútil
carnificina. Porém, o resultado não foi o previsto pelo arrogante imperador, pois
o bafordo terminou com a vitória categórica dos portucalenses. Um a um, os nobres
leoneses, castelhanos e galegos foram humilhados pelos ricos-homens do nosso Condado.
O irmão de Fernão Peres, Bermudo Peres Trava, foi cilindrado por Gonçalo Mendes
Maia, o Lidador, e Peres Cativo vergastou facilmente Rodrigo Velez. Mas o
combate que sempre recordaremos com enorme gozo foi o que colocou frente a frente
Gonçalo Sousa, o nosso alferes, e Fernão Peres Trava, o odiado galego que fora marido
de dona Teresa. O dia da desforra!, anunciou Gonçalo Sousa.
Sentado num palanque, assisti à vingança
mais gostosa que ele podia obter depois dos sofrimentos a que o Trava o sujeitara
em Celmes e em Tui. Com os anos, Gonçalo Sousa transformara-se num guerreiro
admirável, a quem o treino aumentara a perícia e a tranquilidade interior a eficácia,
qualidades às quais se somavam um forte carisma e um rabo-de-cavalo excêntrico,
que faziam suspirar as mulheres. No passado, mostrara mais força do que tino, mas
agora exibia uma frieza implacável. Crescera e aperfeiçoara-se. Montado num cavalo
asturiano, cavalgou em direcção a Fernão Peres com a sua lança comprida e
derrubou-o à primeira estocada, para gáudio da assistência portucalense. Combalido,
o Trava ainda se levantou e ergueu a espada, propondo a continuação da refrega.
Aceitai!, exclamei.
Gonçalo Sousa desmontou e aproximou-se
lentamente, com o escudo a protegê-lo. Parecia não querer investir à toa, mas mal
chegou perto fê-lo com redobrada ferocidade. No seu braço, haviam-se acumulado desejos
de retribuição em camadas, que agora se fundiam num poderoso vórtice de
energia. Ergueu a espada e vergastou o adversário uma, duas, três, quatro vezes,
até que este dobrou o joelho, já cansado. O impetuoso Gonçalo aproveitou: mais um
golpe forte, nova ferida, nova queda. Está batido..., murmurei.
De repente, o torturado de Tui tinha
à mercê o seu antigo carrasco, sangrando de um braço e desarmado. Bastava uma estocada
do portucalense e a goela de Fernão Peres abria-se. Notei no rosto de Gonçalo um
desejo brutal, mas as regras do torneio não permitiam matar um adversário indefeso.
As condições aceites advertiam mesmo que, em caso de subversão clara, o bafordo
seria suspenso e a vitória dada aos cumpridores das normas, mesmo que tivessem perdido
os combates. Cuidado!, avisei. Gonçalo ainda hesitou, dividido entre a vingança
e a regra. Morte era alegria, mas também derrota. Por momentos, o futuro de Portugal
parecia suspenso na espada dele, erguida sobre a cabeça do Trava, cuja expressão
de terror era inesquecível. Mortinho de medo.
Esta é a paga pelo mal que me fizeste
em Tui, nas masmorras onde me haveis sangrado como a um porco!, ameaçou
Gonçalo. Perdoai-me, por favor!, gemeu o aterrorizado Trava». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Intriga de Compostela, Oficina do
Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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