Cortesia
de wikipedia e jdact
Milão.
1243
«(…) Quanto ao facto de poder ser confundido
com um espião, o abade tranquilizara-o: não sendo o facto a investigar um caso
político, mas tratando-se essencialmente de um episódio privado, ninguém iria
poder suspeitar do que quer que fosse. Enquanto ia ruminando com amargura quão
duro era o voto de obediência e como isso marcara pesadamente os últimos anos
da sua vida, Matthew viu-se quase derrubado por um rapazinho que corria como
louco na sua direcção. Seguia-o, gritando impropérios bem expressivos, uma
mulher enfurecida. A bolsa do dinheiro, desgraçado..., roubou-me a bolsa com o
dinheiro! Agarrem-no, por Deus, agarrem esse filho da pu…! Os gritos da mulher
confundiam-se com a algazarra de fundo. O frade virou-se para ver do rapaz, mas
já não o viu, desaparecido, provavelmente por uma das ruelas que atravessam a
cidade. Apesar de o seu furto não o justificar, Matthew sorriu para consigo,
contente pelo facto de o ladrãozinho não ter sido apanhado. A expressão que
vira estampada no rosto da mulher não
prometia nada de bom e, no lugar do ladrãozinho, ele próprio teria fugido a
sete pés.
Debaixo
das arcadas que ladeavam a rua a todo o comprimento adensavam-se as oficinas e
as bancas: peras, maçãs, hortaliças, frangos, queijos de vários tamanhos,
garrafas de vinho, peças de lã, objectos de barro, facas, sacos de areia,
lenha, e tudo aquilo que podia ser útil no dia-a-dia se expunha em bancadas, à
atenção dos compradores, que entupiam o caminho. Enquanto a multidão se
adensava na direcção do Broletto Novo, para onde também se dirigia, observou
que o aspecto das pessoas que ia encontrando era diverso: misturados com os
populares, os carregadores, os comerciantes e os servos, outras personalidades
ricamente vestidas movimentavam-se entre eles. Despreocupados com o pó que os
seus factos apanhariam ao roçar o chão, passeavam em pequenos grupos e falavam
ininterruptamente entre si, se bem que a algazarra circundante não permitisse
compreender qual era o assunto das conversas. O frade, que, apertado entre a
multidão, caminhava ao lado de dois homens, ouviu um pequeno fragmento da sua
conversa: pelas palavras que apanhara a custo, pareceu-lhe compreender que se
tratava de um nobre e de um eclesiástico. Os seus fatos não eram diferentes:
sobre a saia, de tecido fino, a túnica de um pano leve era cingida à cintura
com um cinto de couro incrustado com motivos de prata em relevo. Ambos usavam
meias com sola e cobriam as costas com um manto de seda.
Só
uma pequena cruz de prata suspensa do pescoço e quase invisível entre as
inúmeras pregas das vestes identificava um deles como sendo um homem da Igreja.
Enquanto o frade se questionava por que razão muitos padres de Milão teriam
preferido ao hábito talar as vestes dos laicos, os dois homens encontraram uma
senhora que vinha em sentido contrário. Elegantíssima e orgulhosa, vestia um
fato comprido de seda bordada, cujas mangas, debruadas a todo o comprimento com
uma fila de botõezinhos de prata, eram de tal forma estreitas que não lhe
permitiam qualquer movimento dos
braços: um lindíssimo toucado de linho branco envolvia-lhe delicadamente a
cabeça, deixando fugir, aqui e ali, maliciosos caracóis louros. Uma criada
muito jovem seguia-a de perto, levantando-lhe a cauda do vestido para não
arrastar pelo chão. Os dois homens pararam à sua frente e, depois de terem
feito uma vénia, começaram a falar de modo cerimonioso. Matthew, curioso, teria
parado de bom grado para os ouvir, mas foi empurrado inexoravelmente pela
multidão que avançava. Ao ver aquela imensidão de gente que percorria as ruas,
qualquer um pensaria que, naquela manhã, todos os Milaneses se dirigiam para o
centro da cidade. Evitando por um triz mergulhar no tanque de peixes vivos que
um comerciante expusera fora da sua banca, o frade chegou finalmente próximo do
Broletto.
Queres
companhia, irmãozinho? Olha que sou boa e para os homens da Igreja faço um
preço especial... Matthew sentiu qualquer coisa que lhe roçava pelas costas ao mesmo tempo que ouviu aquela voz
rouca e sensual: virando-se bruscamente, viu-se em frente de um rosto
pesadamente pintado, contornado por uma espessa cabeleira avermelhada. A
prostituta sorria, girando entre os lábios semiabertos a ponta da língua: os
seios, quase completamente descobertos, emergiam, redondos e firmes, do enorme decote
do vestido. O frade corou e abanou a cabeça num gesto negativo: a mulher, que
não mostrava ter mais de vinte anos, deslizou delicadamente a mão pela sotaina
numa evidente carícia lasciva e depois, sempre a sorrir, dirigiu-se a outro
possível cliente. Não era a primeira vez que Matthew recebia este tipo de
propostas: Milão pululava de prostitutas que exibiam os seus dotes em qualquer
esquina.
O
abade tinha-lhe contado que o seu número aumentara consideravelmente desde que a guerra com o
imperador começara. As mulheres, depois de sofrerem a incursão dos exércitos
nos seus campos, tinham vindo para a cidade e engrossado o número de meretrizes
que nela residiam; além disso, a imensidão
de soldados, que alternavam continuamente fora e dentro de Milão, favorecera o
crescimento daquele triste comércio. Como lhe acontecia após um encontro deste tipo, Matthew
experimentava uma profunda ansiedade: o seu pensamento voara até Marthine, que
vira pela última vez em Rochester, havia quase dois anos, em condições de
miséria semelhantes. Teria fugido, teria conseguido libertar-se daquela vida
indigna? Vítima inocente de uma situação absurda, a mulher fora obrigada
a deixar à sua aldeia na sequência de uma infame acusação de bruxaria e
refugiara-se numa cidade onde ninguém a conhecia. Aí, não tendo outro meio de
sustento, vira-se constrangida a prostituir-se para não morrer de fome. Aquela
mesma acusação havia causado a morte de uma outra inocente, Mary, que Matthew,
na sua simplicidade, não pudera salvar. Embora tivesse já passado muito tempo,
o frade não conseguia libertar-se da sua sensação de culpa, que, longe de
enfraquecer, se mostrava cada vez maior e mais dilacerante». In Valeria Montaldi, O senhor do Falcão, 2003, Casa das Letras/Editorial
Notícias, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.
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