segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O Senhor do Falcão. Valeria Montaldi. «A prostituta sorria, girando entre os lábios semiabertos a ponta da língua: os seios, quase completamente descobertos, emergiam, redondos e firmes, do enorme decote do vestido»

Cortesia de wikipedia e jdact

Milão. 1243
«(…) Quanto ao facto de poder ser confundido com um espião, o abade tranquilizara-o: não sendo o facto a investigar um caso político, mas tratando-se essencialmente de um episódio privado, ninguém iria poder suspeitar do que quer que fosse. Enquanto ia ruminando com amargura quão duro era o voto de obediência e como isso marcara pesadamente os últimos anos da sua vida, Matthew viu-se quase derrubado por um rapazinho que corria como louco na sua direcção. Seguia-o, gritando impropérios bem expressivos, uma mulher enfurecida. A bolsa do dinheiro, desgraçado..., roubou-me a bolsa com o dinheiro! Agarrem-no, por Deus, agarrem esse filho da pu…! Os gritos da mulher confundiam-se com a algazarra de fundo. O frade virou-se para ver do rapaz, mas já não o viu, desaparecido, provavelmente por uma das ruelas que atravessam a cidade. Apesar de o seu furto não o justificar, Matthew sorriu para consigo, contente pelo facto de o ladrãozinho não ter sido apanhado. A expressão que vira estampada no rosto da mulher não prometia nada de bom e, no lugar do ladrãozinho, ele próprio teria fugido a sete pés.
Debaixo das arcadas que ladeavam a rua a todo o comprimento adensavam-se as oficinas e as bancas: peras, maçãs, hortaliças, frangos, queijos de vários tamanhos, garrafas de vinho, peças de lã, objectos de barro, facas, sacos de areia, lenha, e tudo aquilo que podia ser útil no dia-a-dia se expunha em bancadas, à atenção dos compradores, que entupiam o caminho. Enquanto a multidão se adensava na direcção do Broletto Novo, para onde também se dirigia, observou que o aspecto das pessoas que ia encontrando era diverso: misturados com os populares, os carregadores, os comerciantes e os servos, outras personalidades ricamente vestidas movimentavam-se entre eles. Despreocupados com o pó que os seus factos apanhariam ao roçar o chão, passeavam em pequenos grupos e falavam ininterruptamente entre si, se bem que a algazarra circundante não permitisse compreender qual era o assunto das conversas. O frade, que, apertado entre a multidão, caminhava ao lado de dois homens, ouviu um pequeno fragmento da sua conversa: pelas palavras que apanhara a custo, pareceu-lhe compreender que se tratava de um nobre e de um eclesiástico. Os seus fatos não eram diferentes: sobre a saia, de tecido fino, a túnica de um pano leve era cingida à cintura com um cinto de couro incrustado com motivos de prata em relevo. Ambos usavam meias com sola e cobriam as costas com um manto de seda.
Só uma pequena cruz de prata suspensa do pescoço e quase invisível entre as inúmeras pregas das vestes identificava um deles como sendo um homem da Igreja. Enquanto o frade se questionava por que razão muitos padres de Milão teriam preferido ao hábito talar as vestes dos laicos, os dois homens encontraram uma senhora que vinha em sentido contrário. Elegantíssima e orgulhosa, vestia um fato comprido de seda bordada, cujas mangas, debruadas a todo o comprimento com uma fila de botõezinhos de prata, eram de tal forma estreitas que não lhe permitiam qualquer movimento dos braços: um lindíssimo toucado de linho branco envolvia-lhe delicadamente a cabeça, deixando fugir, aqui e ali, maliciosos caracóis louros. Uma criada muito jovem seguia-a de perto, levantando-lhe a cauda do vestido para não arrastar pelo chão. Os dois homens pararam à sua frente e, depois de terem feito uma vénia, começaram a falar de modo cerimonioso. Matthew, curioso, teria parado de bom grado para os ouvir, mas foi empurrado inexoravelmente pela multidão que avançava. Ao ver aquela imensidão de gente que percorria as ruas, qualquer um pensaria que, naquela manhã, todos os Milaneses se dirigiam para o centro da cidade. Evitando por um triz mergulhar no tanque de peixes vivos que um comerciante expusera fora da sua banca, o frade chegou finalmente próximo do Broletto.
Queres companhia, irmãozinho? Olha que sou boa e para os homens da Igreja faço um preço especial... Matthew sentiu qualquer coisa que lhe roçava pelas costas ao mesmo tempo que ouviu aquela voz rouca e sensual: virando-se bruscamente, viu-se em frente de um rosto pesadamente pintado, contornado por uma espessa cabeleira avermelhada. A prostituta sorria, girando entre os lábios semiabertos a ponta da língua: os seios, quase completamente descobertos, emergiam, redondos e firmes, do enorme decote do vestido. O frade corou e abanou a cabeça num gesto negativo: a mulher, que não mostrava ter mais de vinte anos, deslizou delicadamente a mão pela sotaina numa evidente carícia lasciva e depois, sempre a sorrir, dirigiu-se a outro possível cliente. Não era a primeira vez que Matthew recebia este tipo de propostas: Milão pululava de prostitutas que exibiam os seus dotes em qualquer esquina.
O abade tinha-lhe contado que o seu número aumentara consideravelmente desde que a guerra com o imperador começara. As mulheres, depois de sofrerem a incursão dos exércitos nos seus campos, tinham vindo para a cidade e engrossado o número de meretrizes que nela residiam; além disso, a imensidão de soldados, que alternavam continuamente fora e dentro de Milão, favorecera o crescimento daquele triste comércio. Como lhe acontecia após um encontro deste tipo, Matthew experimentava uma profunda ansiedade: o seu pensamento voara até Marthine, que vira pela última vez em Rochester, havia quase dois anos, em condições de miséria semelhantes. Teria fugido, teria conseguido libertar-se daquela vida indigna? Vítima inocente de uma situação absurda, a mulher fora obrigada a deixar à sua aldeia na sequência de uma infame acusação de bruxaria e refugiara-se numa cidade onde ninguém a conhecia. Aí, não tendo outro meio de sustento, vira-se constrangida a prostituir-se para não morrer de fome. Aquela mesma acusação havia causado a morte de uma outra inocente, Mary, que Matthew, na sua simplicidade, não pudera salvar. Embora tivesse já passado muito tempo, o frade não conseguia libertar-se da sua sensação de culpa, que, longe de enfraquecer, se mostrava cada vez maior e mais dilacerante». In Valeria Montaldi, O senhor do Falcão, 2003, Casa das Letras/Editorial Notícias, 2005, ISBN 978-972-461-618-6.

Cortesia de CdasLetras/Editorial Notícias/JDACT