Constantinopla. Abril do ano de 1204
«(…) A medida que ia avançando
por aquela orgia de sangue e violência, ia-me perguntando o que fazia eu ali,
no meio daquele desastre humano, incapaz de impedir um só dos crimes que se iam
desenrolando. Pensei no início da nossa viagem, que foi nos primeiros dias de Janeiro.
Algumas semanas antes, Martín, abade da abadia de Sainte-Cécile, à qual
pertenço desde que me tenho por gente, reunira-nos a todos na sala do capítulo.
As contas da casa iam de mal a pior: as colheitas não tinham sido boas e as
rendas pagas eram escassas porque as pessoas não tinham o suficiente sequer
para darem de comer aos filhos. A existência, próxima do nosso cenóbio, de abadias
que, nos anos anteriores, tinham vindo a adquirir grande renome foi uma das causas
principais do desvio dos peregrinos que se dirigiam ao túmulo de Santiago de
Compostela, e eram já muito poucos os que batiam à porta do nosso mosteiro com
donativos para a salvação das suas almas.
Para além disto, os nobres da
região já não queriam ser enterrados na igreja da abadia, e isso supunha a
perda da possibilidade de rezar milhares de missas pagas pela salvação das suas
almas, bem como a perda das terras deixadas nos testamentos como paga pelos
lugares das suas sepulturas e de muitas outras fontes de receita que, em muito
poucos anos, tinham vindo a desaparecer. A abadia necessitava de uma solução que
a levasse a atrair de novo a atenção tanto dos nobres como dos peregrinos. Um
homem proveniente de Constantinopla, que se hospedou na abadia a caminho da
Galiza, falou ao abade das inúmeras relíquias que existiam nas igrejas e
cenóbios daquela cidade do Oriente. Tinham sido levadas para aqueles lugares,
aos poucos, por comunidades de fora da cidade que receavam que os seus tesouros
religiosos caíssem nas mãos dos infiéis. Perante esta informação, o nosso abade
Martín não perdeu muito tempo a pensar: havia que acudir a Constantinopla, cercada,
desde havia alguns meses, pelos latinos, para obter algumas dessas relíquias e
sobreviver, graças a elas, à pobreza que ameaçava a abadia.
O abade comunicou-nos a sua
intenção de se deslocar ao Oriente, acompanhando a comitiva que, dali a poucas
semanas, partiria para a Terra Santa do castelo do senhor de Mollet, que ficava
a meio dia de caminho da abadia, para norte, em resposta ao apelo à luta feito
pelo Papa Inocêncio III alguns anos antes. Depois de explicar, num tom calmo e
solene, os motivos que o levavam a empreender uma viagem tão grande e perigosa,
estabeleceu a hierarquia na sua ausência. Ao terminar, disse que necessitaria
de dois acompanhantes na grande viagem para que se aprestava. Um deles veio a ser
Bernardo, o irmão racioneiro, encarregue de proporcionar aos monges o que quer
que necessitassem. Era um homem bom e honesto que ingressara no mosteiro um ano
depois da minha chegada por ter perdido a mulher e os cinco filhos para uma
doença estranha, que lhos levou em menos de duas semanas. Não era de sangue
nobre, mas tinha terras, que doou à abadia no momento do ingresso. A sua
figura, taciturna e frágil, sempre despertara a minha atenção. Parecia carregar
nos ombros um fardo pesado, com os olhos tristes e o sorriso lânguido, mas
parecia sempre envolto numa estranha ternura, que me tinha demonstrado
contando-me histórias da sua vida de laico, dos filhos (dizia sempre que eu lhe
fazia lembrar o mais novo) e da esposa, a quem adorava. Fora filho do sacerdote
de uma paróquia importante, situada a sul de Montpellier, e o seu pai teve o
cuidado de lhe proporcionar o estudo do grego e do latim, para que pudesse ler os
textos sagrados, pensando que, com o tempo, lhe seguiria os passos como homem
da Igreja. Mas no seu caminho cruzou-se uma mulher e ele deixou os estudos para
se dedicar a ela e às terras que trabalhava com as próprias mãos para sustentar
a família. Perante a possibilidade de vir a precisar de um tradutor, o abade
pensou que os seus conhecimentos de grego o talhavam para aquela viagem.
Por fim, e antes de dar por
terminado o acto, o abade Martín pousou os olhos profundos e escuros em mim e
anunciou-me que eu também o acompanharia na viagem, pois precisava de alguém
jovem e forte para o acompanhar naquele caminho tão perigoso, razões estas que me
deixaram boquiaberto, pois tenho de reconhecer que a força nunca foi uma das
minhas virtudes.
Temos
de ir à abadia do Cristo Pantocrator (Todo Poderoso), disse, virando-se para
nós depois de nos reter diante das portas da Igreja de Santa Sofia por alguns
instantes. Era evidente que lhe parecia impossível e, sobretudo, perigoso
entrar, por causa dos desmandos que ali faziam os latinos. Lá também deve haver
relíquias. Tomá-las-emos e regressaremos ao barco. Vamos, rápido! Bernardo e eu
caminhámos colados ao hábito do abade, que volteava no ar a cada passo, como se
à túnica esvoaçasse em torno do seu corpo sem sequer lhe tocar. Apercebi-me de
que a parte de baixo do seu saio, antes branca e impoluta, estava manchada de
sangue salpicado dos charcos e regueiros de morte que corriam pelas ruas». In
Paloma Shanchez-Garnica, A Brisa do Oriente, 2009, tradução de Luís Coutinho,
Saída de Emergência, 2012, ISBN 978-989-637-411-2.
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