sábado, 5 de janeiro de 2019

A Bolsa e a Vida. Jacques Le Goff. «O cardeal Roberto Courçon, cónego de Noyon, que reside em Paris desde 1195, antes de dirigir a Cruzada contra os Albigenses em 1214…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O Decreto de Graciano (por volta de 1140), matriz do Direito Canónico, retomou a fórmula de Santo Ambrósio Ubi ius belli, ibi ius usurae (Onde existe direito de guerra, existe direito de usura). 4. Segundo o salmo XV, o usurário não pode ser hóspede de Javé:

Quem será digno, Javé, de habitar no Teu Tabernáculo
Quem será digno de hospedar-se em Teu santo monte?
Quem vive na inocência e justiça
nem empresta dinheiro com usura...

O cristão da Idade Média viu, nesse salmo, a rejeição do Paraíso ao usurário. A esses quatro textos do Antigo Testamento, pode-se acrescentar a passagem em que Ezequiel, entre os violentos e sanguinários que suscitam a cólera de Javé, cita: aquele que empresta com usura e cobra juros, e onde profetiza: morrerá e o seu sangue ficará sobre ele. Jerónimo e Agostinho comentaram esse julgamento de Ezequiel. 5. Enfim, no Novo Testamento, o evangelista Lucas retomou e ampliou a condenação vétero-testamentária, estabelecendo assim a estrutura reiterada necessária para que os cristãos da Idade Média considerassem a autoridade das Escrituras confirmada: se emprestais àqueles de quem esperais receber, que vantagem tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber o equivalente. Mas ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei-lhe o bem e emprestai sem nada esperar. O que mais se levou em conta, na Idade Média, foi o final do texto de Lucas: Mutuum date, nibil inde sperantes, porque a ideia de emprestar sem nada esperar está expressa através de duas palavras chaves da prática e da mentalidade económicas medievais: mutuum que, retomada do Direito Romano, designa um contrato que transfere a propriedade e consiste num empréstimo que deve ser gratuito, e o termo sperare, a esperança, que na Idade Média designa a espera interessada de todos os actores económicos empenhados numa operação implicando o tempo, inscrevendo-se numa espera remunerada, seja por um benefício (ou uma perda), seja por um interesse (lícito ou ilícito).
Depois vem uma longa tradição cristã de condenação da usura. Os padres da Igreja expressam o seu desprezo pelos usurários. Os cânones dos primeiros concílios proíbem a usura aos clérigos (cânone 20 do concílio de Elvira, cerca de 300; cânone 17 do concílio de Nicéia, 325), depois estendem a proibição aos laicos (concílio de Clichy, em 626). Sobretudo Carlos Magno, legislando tanto em relação às coisas espirituais quanto às temporais, proíbe a usura tanto aos clérigos quanto aos laicos através da Admonitio generalis de Aix-la-Chapelle desde 789. É, pois, um considerável passado de condenação por parte dos poderes eclesiástico e laico, que pesa sobre a usura. Mas, numa economia contraída, onde o uso e a circulação da moeda continuam débeis, o problema da usura é secundário.
São, aliás, os mosteiros que fornecem, até o século XII, o essencial do crédito necessário. No final do século, o papa lhes proibirá a forma preferida de crédito, o mortgage, empréstimo garantido por um imóvel cujo arrendador recebe os rendimentos. Quando a economia monetária se generaliza, durante o século XII, e a roda da fortuna gira mais rápida para os cavaleiros e os nobres, assim como para os burgueses das cidades, que se agitam em trabalho e negócios e se emancipam, a senhora Usura torna-se uma grande personagem. A Igreja se revolta com isso, o Direito Canónico nascente e em breve a escolástica, que se esforça para pensar e ordenar as relações da nova sociedade com Deus, procuram reprimir a expansão usurária. Listo aqui a litania das principais medidas conciliares e dos textos mais importantes apenas para assinalar a extensão e a força do fenómeno, e a obstinação da Igreja em combatê-lo.
Cada concílio, Latrão II (1139), Latrão III (1179), Latrão IV (1215), o segundo concílio de Lyon (1274), o concílio de Viena (1311), traz a sua pedra para a muralha da Igreja, determinada a conter a vaga usurária. O Código de Direito Canónico se enriquece também com uma legislação contra a usura. Graciano, por volta de 1140, no seu Decreto, reúne a documentação escriturária e patrística (ciência que estuda a doutrina dos papas) 29 autoridades. A decretal Consuluit de Urbano III (1187) terá, no segundo quartel do século XIII, o seu lugar no Código junto às Decretais de Gregório IX. Os teólogos não ficam atrás. O bispo de Paris, Pedro Lombardo, falecido em 1160, no seu Livro de sentenças, que será no século XIII o manual universitário dos estudantes de teologia, retomando Santo Anselmo, que na passagem do século XI ao XII fora o primeiro a assimilar a usura a um roubo, situa a usura, forma de rapina, entre as proibições do quarto mandamento. Não roubarás (Non furtum facies). O cardeal Roberto Courçon, cónego de Noyon, que reside em Paris desde 1195, antes de dirigir a Cruzada contra os Albigenses em 1214 e de dar à jovem universidade de Paris os seus primeiros estatutos (1215), havia inserido na sua Suma, anterior ao concílio de Paris de 1213, no qual fez com que fossem tomadas medidas rigorosas contra os usurários, um verdadeiro tratado De usura». In Jacques Le Goff, A Bolsa e a Vida, 1986/1989/2004, Editorial Teorema, 2006, ISBN 978-972-695-683-9.

Cortesia de ETeorema/JDACT