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Dezembro de 1944. Sul da Alemanha
«(…) Vira-te para afrente e está quieto.
Endireitou-se e olhou para os pés, sem meias, enfiados numas botas já muito estragadas,
uma fraca protecção contra aquele inverno gelado. Ao seu lado, o rabi começara novamente
a tossir, e o seu corpo frágil tremia como se alguém o estivesse a sacudir. Yitzhak
segurou as mãos do velho entre as suas e esfregou-lhas, tentando transmitir-lhes
algum calor. Larga-o, rosnou o guarda. Mas ele... És surdo? Disse-te para o largares.
Levantou a arma e apontou-a para Yitzhak. O velho afastou as mãos das dele. Não
te preocupes comigo, meu jovem amigo, disse. Nós, os rabis, somos muito mais
resistentes do que julgas. Esboçou um sorriso fraco e mergulharam ambos no silêncio,
de olhos postos no chão e a tremer, balançando um contra o outro sempre que o camião
descrevia uma curva. Eram seis, não contando com os dois guardas: quatro judeus,
um homossexual e um comunista. Tinham sido conduzidos para fora do campo e metidos
no camião logo de madrugada, e desde essa altura que viajavam para leste e su1,
pensava Yitzhak, embora não perdesse ter a certeza. Inicialmente, a terra apresentara-se
plana e húmida, e a estrada seguia a direito. Contudo, na última hora, tinham começado
a subir uma vertente íngreme e cheia de curvas, enquanto os pastos e as florestas
iam ganhando gradualmente o tom branco da neve. Vinha outro camião atrás deles,
com o condutor e outro homem na cabina, mas, tanto quanto Yirzhak sabia, não levava
prisioneiros na traseira.
Passou a mão pela cabeça rapada, não
conseguia habituar-se àquela sensação mesmo depois de quatro anos, juntou as mãos
entre as coxas, contraiu os ombros e tentou que a sua mente seguisse à deriva, combatendo
o frio e a fome com pensamentos a respeito de tempos melhores e mais quentes. Jantares
de família na sua casa em Dresden; os estudos da Mishnah na velha yeshiva;
a alegria dos dias santos, em especial o Hanukkah, o festival das luzes, o seu favorito
entre todas as festividades comemorativas. E, claro, Rivka, a bela Rivka, a sua
irmã mais nova. Que engraçada era, com a sua massa de cabelos negros como carvão
e os olhos flamejantes! Que esperta e traquinas! Porcos!, gritara, quando
arrastaram o pai de ambos para a rua e lhe cortaram os caracóis das têmporas. Porcos
nojentos! E fora por causa disso que lhe tinham arrancado punhados de cabelos,
para depois a encostarem a uma parede e lhe darem um tiro. Tinha treze anos e
era tão bonita... Pobre Rivka. Pobre pequenina Rivka.
O camião passou por cima de um sulco
e deu um violento safanão, despertando-o para o presente. Olhou para a traseira
e verificou que passavam por uma grande povoação. Torceu o pescoço, espreitou pelo
rasgão na lona e viu de relance a tabuleta ao lado da estrada: Berchtesgaden. O
nome soava-lhe vagamente familiar, embora não conseguisse localizá-lo.
Vira-te para a frente!, grunhiu o
guarda. Não volto a avisar-te. Prosseguiram durante mais trinta minutos e a
estrada tornou-se mais íngreme e com curvas mais apertadas, até que por fim escutaram
o apito seco do camião que os seguia e encostaram à berma.
Fora!,
ordenaram os guardas, empurrando-os com as armas. Debateram-se para saltar do camião,
e das suas bocas soltavam-se nuvens de vapor. Encontravam-se no meio de uma espessa
floresta de pinheiros, estacionados junto a um velho edifício de pedra já sem janelas
e cujo telhado abatera. Lá muito em baixo, entre os ramos carregados de neve, avistavam-se
manchas verdes de pastagens com casas aqui e acolá, tão pequenas como brinquedos
e de cujas chaminés se erguiam novelos de fumo. Para cima, as vertentes íngremes
e densamente arborizadas continuavam a subir, desaparecendo numa cortina de neblina
e nuvens ainda mais escura, o que sugeria a existência de altas montanhas. Estava
tudo muito silencioso e fazia muito, muito frio. Yitzhak bateu com os pés no chão
para evitar que ficassem entorpecidos». In Paul
Sussman, O Último Segredo do Templo, 2005, Bertrand Editora, 2016, ISBN
978-972-253-056-9.
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