«(…) Ninguém
em toda Pádua tinha qualquer simpatia pelo reitor. E ninguém, sem dúvida,
lastimaria por vê-lo morto. Como
todas as manhãs, por volta do meio-dia, Alessandro Legnano ía à Piazza dei Frutti.
Atravessará a
Riviera di
San Benedetto, na sua
passagem será cumprimentado por todos, não sem uma empolada grandiloquência, e
depois de virar em direcção
ao Ponto Tadivão
desejar-lhe, por trás, os piores augúrios. Com o mesmo anelo do messere Vittorio,
a obesa vendedora de frutas, de
quem, como todos os dias, o reitor haverá de comprar uns damascos, irá augurar-lhe um bom apetite e, para si, rogará que o freguês
se engasgue com o caroço. E tal qual a vendedora de frutas, o alfaiate, em cuja
loja haverá de se deter para encomendar um lucco de seda, desejará vê-lo enforcado na
delicada estola que ele lhe encomendara na semana anterior e que provocou o seu
comentário, com um gesto de repulsa: não a
haveríeis cortado com os dentes? Legnano sabia que todos o odiavam, o que só
lhe provocava um imenso prazer.
O reitor fora discípulo de Jacob
Sylvius, em Paris. Mas não possuía o talento do mestre para as artes médicas. A
única coisa que Alessandro herdara de Sylvius era a sua visceral tendência a
suscitar o desprezo dos seus semelhantes. Todos os qualificativos aplicados ao
anatomista francês, avaro, grosseiro, arrogante, vingativo, cínico e cobiçoso,
entre outros, eram poucos para adjectivar o reitor da Universidade de Pádua, e
ele mesmo, sem dúvida, não esperava para o seu epitáfio algo menos lapidar do
que o que dedicaram ao seu mestre: aqui jaz Sylvius, que jamais fez nada sem
pagamento. Agora que está morto, fica furioso de que leias isto de graça.
Naquela manhã o reitor estava de excelente humor. Parecia
confortado. Tinha o aspecto espiritual de quem ganhou uma batalha. E, com
efeito, assim fora exactamente. Deleitava-se antecipadamente com o ansiado lume
da fogueira que com todo o prazer acenderia, se dele dependesse, com as
próprias mãos. Esperava ansiosamente que o dia que estava recém-começando
acabasse de uma vez. Amanhã seria o início do processo que ele iniciara, não
sem inumeráveis escolhos, ante os cardeais Caraffa e Alvarez Toledo e,
consequentemente, ante Paulo III em pessoa. Alessandro Legnano caminhava
animado, como se de repente houvesse deixado de sofrer da gota que arrastava,
fazia anos, como um empecilho pertinaz. Tanta era a sua euforia que sequer notou
que da sandália de messere Vittorio sobressaía um pedaço de papel
maldobrado. Talvez a solícita atitude do messere não tivesse outro fundamento senão a
ignorância. Quiçá o escultor florentino não soubesse que, se descoberto, teria
a mesma sorte que o seu amigo: segundo a Sagrada
Legislação, quem falasse com hereges presos haveria de ser considerado também
herege.
Mateo Colombo tornara-se a última
obsessão do reitor. Ambos jamais se haviam entendido. Legnano nutria por Mateo
Colombo um ódio proporcional à íntima admiração que lhe devotava. Sempre se havia
dirigido ao anatomista com desprezo e não perdia oportunidade para
desqualificá-lo diante dos alunos, chamando-o il barbieri, como
alusão à norma que excluía os cirurgiões do Real Colégio de Médicos e os
obrigava a filiarem-se à Corporação de Barbeiros, que os igualava a padeiros,
cervejeiros e notários públicos. Naturalmente, quando Mateo Colombo se tornou
uma eminência, o reitor não se furtou aos elogios e tomou posse das
felicitações chegadas de toda parte quando o seu catedrático descobriu as leis
da circulação sanguínea, tal como se o mérito devesse ser atribuído à
inspiração que a sua reitoria irradiava. O anatomista e o reitor em nenhum
momento demonstraram grande simpatia mútua. Ao contrário. Mantinham uma
recíproca, embora não simétrica, inveja». In Federico Andahazi, O
Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1998,
ISBN 978-972-232-362-8.
Cortesia de
EPresença/JDACT