sábado, 19 de janeiro de 2019

A Intriga de Compostela. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Afonso VII e o príncipe de Portugal passearam pelos campos de Valdevez e as primeiras palavras do monarca leonês foram inesperadas. Antes dos tratados, os afectos»

jdact

A intriga de Compostela 1140-1142
Arcos de Valdevez. Março de 1141
«(…) Preocupado, Afonso Henriques fez menção de se levantar, o prejuízo seria grande de mais. Porém, o nosso amigo mostrou porque era ele o alferes dos portucalenses, e declarou ao opositor ajoelhado, com fino requinte, que o pouparia se ele fizesse uma promessa. Enquanto o Trava, patético e a tremer de receio, o olhava com expectativa, Gonçalo exigiu: ide à Terra Santa, com vosso irmão Bermudo, pedir perdão a Deus pelo incesto que haveis cometido, pois ambos foram maridos da nossa rainha, a falecida dona Teresa! Então, o antes tão feroz Fernão Peres, esquecendo a vaidade com que pavoneava o balandrau e tolhido de pavor, garantiu ir a Jerusalém para se penitenciar junto do túmulo de Cristo, o que satisfez Gonçalo Sousa. Vitória!, alegrou-se Chamoa, batendo palmas.
A contenda estava encerrada, mas o nosso alferes ainda provocou algum alarido, pois retirou da cintura do Trava o belo punhal de Paio Soares, com o qual anos antes fora torturado, nas masmorras de Tui. Divertido, perguntou ao combalido: então, tudo espeta? Era o bordão brincalhão que Gonçalo usava. Sempre que chegava perto de nós, em vez de nos saudar com os bons-dias ou boas-noites, perguntava: então, tudo espeta? Sentado no meu lugar, não contive o riso, enquanto o nosso amigo, com óbvio prazer levava o punhal à cara de Fernão Peres e, com a ponta da arma, lhe fazia um minúsculo furo na bochecha, por onde saiu uma gota de sangue. Estou finalmente vingado!, exclamou Gonçalo.
Virando as costas ao adversário agarrado à cara, caminhou na direcção do palanque e, com um sorriso triunfante, entregou a Chamoa aquele belo objecto que pertencera ao primeiro marido dela, Paio Soares. A minha cunhada aceitou o punhal e sorriu a Gonçalo, enquanto Afonso Henriques se mantinha sério e o imperador, num palanque do lado oposto ao nosso, atirava ao chão uma pequena bandeira branca, sinal de que dava por terminado o bafordo, reconhecendo a derrota de leoneses, castelhanos e galegos.
Nessa mesma tarde, Afonso VII e o príncipe de Portugal passearam pelos campos de Valdevez e as primeiras palavras do monarca leonês foram inesperadas. Antes dos tratados, os afectos. O imperador perguntou se o primo tinha mesmo desposado Chamoa. Não recebendo resposta, criticou-o: um casamento secreto... Ela merece melhor! Decidido, o meu melhor amigo declarou que não estavam ali para falar sobre mulheres, obrigando o imperador a mudar de assunto. Esperto e rápido, este concedeu que os territórios de Toronho, Celanova, Límia, Astorga e Zamora seriam nossos. Mas não o resto da Galiza!, avisou.
Era uma grande vitória, a vasta faixa sul da Galiza iria finalmente unir-se ao Condado Portucalense, como sempre haviam desejado o conde Henrique e dona Teresa. Será também vosso o que conquistardes a sul do Tejo, mas não podereis avançar até Badajoz, Cáceres ou Cória! Afonso VII considerava que, antes da batalha de Ourique, o primo se internara em demasia na Andaluzia, e Afonso Henriques aceitou conter-se nessa fronteira. Ides atacar Córdova?, perguntou o meu amigo. O imperador confirmou estar para breve o ataque a Cória, que ficava a norte de Badajoz. Além disso, dali a um ou dois verões marcharia até ao palácio do Azzahrat. Mas Córdova vai demorar a cair, pois Ismar é forte, disse o imperador. Tendes de fazer a vossa parte! Atacai Santarém e Lisboa!
O príncipe de Portugal prometeu-o, sem confirmar datas precisas. As primeiras coisas primeiro, o Papa teria também de o reconhecer rei. Ao ouvir esta exigência, o imperador sorriu: como sabeis que vos vou fazer rei? Afonso Henriques ripostou-lhe de imediato: não o serei por vossa vontade, mas sim porque o mereço! Afonso VII calou-se. O primo portucalense resistira a tudo, não havia como negá-lo. Então, o habilidoso monarca leonês propôs uma fórmula inovadora para saírem airosamente daquele imbróglio. Sereis rei de Portugal nos territórios do Condado Portucalense, mas rei-vassalo nos da Baixa Galiza! Após uma reflexão silenciosa, o príncipe de Portugal aceitou estes termos, o que levou o seu satisfeito primo a exclamar que a Afonso Henriques, para ser rei cristão, só faltava agora uma bula do Papa! Examinando os campos que se estendiam até Arcos de Valdevez, repletos ainda de tendas, cavalos e soldados, Afonso VII acrescentou: se a relíquia da Terra Santa estivesse já a caminho de Roma... Sabeis quem a levou? Não, lamentou-se Afonso Henriques». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
                                                                                       
Cortesia da CasadasLetras/JDACT