«Como uma premonição, o nome de
Tordesilhas inscreveu certeiramente na alma de Catarina de Habsburgo, a última das
filhas da rainha Joana I de Castela, a Louca, e do rei Filipe de Habsburgo,
o Belo, uma marca indelével. Condenada a cumprir por obrigação, nos anos
mais luminosos da sua infância e juventude, uma clausura ingrata ao lado da
mãe, o destino acumulou sobre ela dores que poderiam considerar-se
insuportáveis, mas a abnegação, a humildade e a prudência assistiram-na no caminho
da vida, sem que nunca se desse por vencida.
A infanta nasceu em Torquemada, no
ano do Senhor de 1507, quatro meses depois da morte do pai. Desde o próprio dia
do seu nascimento e até fazer dois anos, a pobre foi destinada a acompanhar a enlutada
mãe num triste peregrinar pelos caminhos castelhanos, levando como cortejo
fúnebre o corpo inerte do progenitor, que, por disposição testamentária, pedira
para ser enterrado em Granada. Viajando durante a noite, sob as estrelas, e recolhendo-se
durante o dia, para evitar a luz do Sol, a mãe procurava protegê-la da peste e da
reclusão. Rapidamente os olhos da princesa se habituaram às sombras, à eterna companhia
de um cortejo sombrio rodeado por archotes acesos e por um féretro que
arrecadava os despojos daquele que fora em vida seu pai, o arquiduque de Áustria,
Filipe, o Belo.
Por ordem do avô, Fernando, o Católico,
mal fez dois anos, foi encerrada com a mãe, que adorava, no desolado castelo de
Tordesilhas. Perdeu tristemente a sua infância e adolescência ao ser privada da
liberdade e, em determinados períodos, até lhes foi proibida a comunicação uma
com a outra. Quando chegou à idade de compreender, vendo a mãe sofrer tanto, pediu
ao irmão, o imperador Carlos V que as libertasse de tão terrível e injusto isolamento.
Mas tudo foi em vão. Viveu encarcerada com ela até aos dezoito anos, data em
que, por ordem imperial, saiu do indigno encerramento para desposar o primo, o rei
João III de Portugal.
As suas núpcias pareciam tê-la amparado
no seu ingrato destino, mas não conseguiram protegê-la das grandes tristezas que
a vida ainda lhe reservava. Todo o seu existir foi agitado pelas contradições. Conheceu
a pobreza mais extrema e a mais assombrosa riqueza; o feliz amor de um esposo
apaixonado e o calvário das mortes dos seus nove filhos, mas nunca nada nem ninguém
conseguiu vergar a sua fé inquebrantável, que a ajudou a superar as dores mais
extremas com profunda e serena valentia.
Foi urna rainha modesta, simples e
prudente, virtudes herdadas da mãe, que a acompanharam durante toda a vida, fazendo
dela uma mulher admirável. Os anos em Tordesilhas não passaram em vão para ela.
E é esse desamparo perante o destino que hoje a transforma num paradigma válido
para todas as mulheres». In Salta, Argentina, a 29 de Março de 2011
Convento
da Nossa Senhora da Boa Esperança
Lisboa, 14 de Janeiro do ano do Senhor de
1577
«Conseguia ouvir o repicar prudente
e melodioso das laudes, mas não conseguia ver para 1á do livro de horas que tinha
entre as mãos. As lágrimas turvavam-me o olhar, uma inesperada calma entre cada
chamada envolvia o ar e, como um vislumbre dos prazeres esquecidos, parecia-me agradável
aos ouvidos o toque musical dos sinos. Talvez porque a sua diáfana cadência me
recordava os de Santa Clara, deitando por terra os céus de Tordesilhas, convocando
às orações... Era espantoso, o mesmo silêncio de madrugada, os mesmos repiques,
o mesmo hábito negro. Se não fossem os cinquenta e dois anos que me separam daquele
inesquecível solar, poderia dizer que estava ali, junto de minha mãe, a
escassos dias de realizar o meu último aniversário em terras de Castela. Essa Castela
ressequida e poeirenta, esquecida pela mão de Deus, como nós. Quando me afastei
para sempre da sua companhia, ainda me faltavam cinco dias para fazer dezoito anos
e levava na alma, ligadas nas mesmas proporções, as angústias e as alegrias». In
Yolanda Scheuber, Catarina de Habsburgo, Rainha de Portugal, Ediciones
Nowtilus, 2011, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2013, ISBN
978-972-462-077-0.
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