segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Os Reféns. 1147. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «O antigo alferes regressou a Lisboa ufano e vitorioso, mas a sua surtida enfureceu Afonso Henriques, que o obrigou a distribuir os proveitos pelos cruzados»

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Os Reféns. 1147
Silves, Agosto de 1147
«(…) Embora esgotado, depois de ajudar Maryam e Zaida a subirem para o barco, Mem correu a apagar as chamas, aquilo não podia acabar assim. E não acabou. Apesar dos danos, de manhã conseguiram chegar à foz do Arade. Estamos salvos no mar, disse o piloto. Só pararam a meio da tarde, numa pequena vila piscatória mais a norte, onde conseguiram obter víveres e remendar a vela. Maryam estava com febre e Mem colocou-lhe panos molhados na testa até a criança adormecer. Para onde vamos? perguntou Zaida. Mem referiu Lisboa, onde se encontravam Afonso Henriques e os cruzados, mas ela protestou, dizendo-se farta de perigos. Só quando o antigo almocreve lhe disse que a irmã Fátima estava a morrer é que a princesa acedeu. O sangue dos Benu Ummeya impunha-lhe uma última homenagem. Por fim, com um ar triste, perguntou a Mem: cortaram-lhe a cabeça? O cavaleiro de Almourol não queria falar sobre a morte de Ibn Qasi, mas acabou por confirmá-la. Zaida manteve-se calada algum tempo e depois comentou: o meu marido morreu como o tirano que era.

Lisboa, Setembro de 1147
Os relatos vindos do interior de Lisboa eram aterradores. Os que de lá escapavam descreviam uma degradação intensa, com a fome a ceifar inúmeras vidas. Faltavam cereais, legumes, frutas e mesmo a água rareava. Desalentados com as notícias de que o socorro não chegaria, muitos habitantes entregavam-se aos cruzados, sendo obrigados a aceitar uma conversão forçada. No entanto, por vezes matavam-nos antes de um prelado chegar. Os irmãos Vítulo e Giraldo lideravam um grupo que se especializara em torturar os sitiados. À noite, colocavam comida perto das muralhas e quando algum mais afoito aparecia degolavam o infeliz, mesmo que este se rendesse. Que bestas..., comentou Pêro Pais.
Só uma última esperança havia entre os mouros, a de que Sintra e Almada enviassem reforços. Porém, em meados de Setembro dois acontecimentos reduziram a pó essa derradeira expectativa. Gonçalo Sousa, acompanhado apenas por portucalenses, realizou um fossado contra Sintra sem autorização prévia do rei de Portugal, obtendo um importante saque. O antigo alferes regressou a Lisboa ufano e vitorioso, mas a sua surtida enfureceu Afonso Henriques, que o obrigou a distribuir os proveitos pelos cruzados.
Sois nosso rei ou vassalo deles?, indignou-se Gonçalo. O segundo episódio aconteceu perto do fim do mês, quando um pequeno grupo de anglo-normandos foi dizimado pela guarnição sarracena de Almada. Enfurecidos, os irmãos Vítulo exigiram uma pronta retaliação, obrigando Hervey Glanville a aprovar uma expedição. Também sem o conhecimento do rei de Portugal, quarenta nobres anglo-normandos, acompanhados por mais de cem peões, arqueiros e besteiros, atravessaram o Tejo e lançaram-se ao assalto da pequena povoação. Uma chacina desnecessária, protestou Pêro Pais. Quinhentos populares foram mortos, incluindo velhos, mulheres e crianças, enquanto eram decapitados os oitenta soldados que defendiam o castelo. As suas cabeças, trazidas para Lisboa de barco, foram espetadas em lanças em frente das muralhas, para que os resistentes lisboetas percebessem que ninguém os viria socorrer. Porém, não ter existido divisão do saque de Almada atiçou as fúrias dos portucalenses. Damos-lhe o nosso saque, mas eles não dividem o deles?, perguntou Gonçalo Sousa.
Perante esta ausência de reciprocidade, Gonçalo acusou o rei de parcialidade inaceitável! A discórdia portucalense cresceu e de uma assentada vários notáveis vieram à tenda de Afonso Henriques debitar queixumes. Por mais que este lhes fizesse ver o quanto precisava dos cruzados, a querela inflamou-se. Querem deixar-nos, lamentou-se o rei de Portugal. Nessa noite, com ele já só estavam João Peculiar, arcebispo de Braga; Pedro Pitões, bispo do Porto; Peres Cativo, o mordomo; o alferes Pêro Pais e o seu amigo Gualdim Pais. Dos inúmeros nobres portucalenses que meses antes tinham vindo, restavam os meus irmãos e eu, todos os outros queriam regressar ao Norte». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT