Derrota e sangue
«(…) A 6 de Julho de 1583
aproximou-se da ilha de São Miguel a esquadra do marquês de Santa Cruz: 5
galeões. 2 galeaças, 12 galés, 31 naus grossas, 12 patachos , 15 zavras, 14
caravelas de Portugal, 7 barcas grandes e 8978 soldados espanhóis, biscainhos,
italianos e tudescos, 3 terços, 3820 homens do mar,50 cavaleiros particulares, fora
a gente de remo de galés e galeaças. Ao todo, 15 000 homens. Participavam também
200 aventureiros portugueses. Filipe I, o prudente, não tinha muita confiança
nos soldados lusos.
O marquês de Santa Cruz mandou
dizer aos portugueses: se se entregassem, o rei Filipe deixava-lhes os bens e
perdoava-lhes. E os franceses da nova armada que viera em favor de dom António podiam
ir em paz com as armas e as bandeiras. Manuel Silva mandou fazer uma caravela
mas os capitães impediram-lhe a fuga. Tentou o porto de Biscoitos, as mulheres
desfizeram os barcos. Na madrugada do dia 26 de Julho de 1583, 4500 infantes,
com a companhia dos aventureiros portugueses na frente, desembarcaram na baía
de Porto de Mós. Os terceirenses lançaram outra vez as vacas e os bois, uns
600. Não disparem sobre os animais, abram-lhes o caminho. Combateram o dia
todo. Ao outro dia, ao amanhecer, os atacantes viram que os portugueses tinham
fugido para a serra, seguidos pelos franceses. Então as galés espanholas
atacaram os 30 navios ancorados no porto. Não ofereceram resistência.
Abriram-se as cadeias de Angra. Durante três dias a cidade foi saqueada.
O juiz e o escrivão do Pico
vieram oferecer a ilha ao marquês de Santa Cruz. No regresso, foram mortos
pelos moradores. No Faial, onde estavam aquartelados 500 franceses, o capitão
da ilha, António Guedes, recebeu as cartas do comando filipino. Meteu-as
debaixo do rabo do seu cavalo sem as querer ler e esbofeteou e matou à espada o
emissário. O marquês de Santa Cruz mandou degolar António Guedes. Os franceses
puderam embarcar e os faialenses foram parar às galés. As ilhas de S. Jorge, da
Graciosa e do Pico entregaram-se. O marquês de Santa Cruz mandou queimar a moeda
de dom António. Depois voltaram a funcionar na Praça de Angra a forca e o
cutelo. Os enforcados perdiam os bens e eram esquartejados. Degolaram Manuel
Silva, tirano, matador, roubador, recolhedor de hereges. A sua cabeça ficou exposta
na praça. Degolaram outros fidalgos e Amador Vieira, o embaixador de Filipe que
se passou para dom António. Enforcaram o juiz de Angra como amotinador, um
capitão de infantaria como induzidor, um capitão de companhia, o capitão da fortaleza
de São Sebastião e outro capitão de fortaleza, o pregoeiro, um mareante por ir
e vir de França com recados, o corregedor Gaspar Gamboa e muitos outros.
Os corações não eram todos uns
A 28 de Agosto ordenaram-se novas
festas em Lisboa. Filipe I já estava em Madrid. Nessa noite puseram candeias
nas janelas, arderam fogos e dispararam as bombardas, os mosquetes e os
arcabuzes. No dia seguinte, na procissão da Sé a São Domingos, participaram todas
as Ordens mas os corações não eram todos uns, porque viviam os mais em
esperanças de se verem noutro estado. Outros folgavam muito deste tempo
presente dando por razões que tínhamos um rei grande senhor e muito poderoso
que todos o haviam de temer e que não havia mais de haver ladrões no mar e que
o dinheiro que havia de nadar pelas ruas e outras muitas grandezas... Nesse
Verão de 1583, conquistadas as ilhas rebeldes, regressou a Lisboa a segunda
armada do marquês de Santa Cruz. Arrastava consigo as bandeiras da vitória e a
sombra da forca e da degola. Houve novas luminárias e mais uma procissão solene
da Sé a São Domingos.
O ódio que os
lisboetas devotavam ao marquês de Santa Cruz ficaria bem expresso por ocasião
da sua morte, ocorrida a 9 de Fevereiro de 1588, em Lisboa, pouco antes da
partida da Invencível Armada. Não foi sentida por ninguém por ser um homem
muito cruel para os portugueses... Era o maior chatim e mercador. Deixou 318 000
cruzados em dinheiro de contado fora 50 000 que tinha de renda; e a sua
recâmara de tapeçaria, jóias e pedraria; e muitas naus que trazia no mar ao
trato. À sepultura não o acompanharam mais que quatro pessoas.
Levaram-no de noite a Alcântara, aos Marianos.
Lisboa
A união de Portugal à Coroa
espanhola deu a Filipe um novo litoral atlântico, uma frota para ajudar a
protegê-lo e um segundo império que se estendia de África ao Brasil e de
Calcutá às Molucas. Às nações da Península Ibérica e aos novos territórios coloniais,
Filipe I juntava, na Europa do Norte e do Sul, os Países Baixos, a Borgonha, o
Franco Condado, Milão, o reino de Nápoles, da Sicília e da Sardenha. Os
exércitos e as armadas, a Igreja da Contra-Reforma e o Papa uniam com a força e
a doutrina estes territórios desirmanados, muitos deles insurgentes.
Durante os vinte meses de estada
de Filipe I, a cidade de Lisboa fez as vezes de capital. Por via marítima e
pelos cavalos da posta chegavam as notícias e seguiam os despachos. Em Lisboa
reuniu os Conselhos, os embaixadores e o Legado do Papa. Em Lisboa lhe deram a
notícia de que fora deposto pelas Províncias Unidas dos Países Baixos. As
diferentes seitas calvinistas e luteranas recusavam as leis do Concílio de
Trento, o tribunal da Inquisição (maldita) e respondiam à terrível repressão
exercida pelo Tribunal dos Tumultos». In António Borges Coelho, Os Filipes,
Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.
Cortesia de
Caminho/JDACT