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«(…) Encarcerado
no seu próprio claustro, Mateo Colombo acabava de redigir a alegação que
haveria de apresentar ao tribunal. Ainda reverberava o eco da última badalada a
chamar para a missa quando, diante da sua janela, divisou uma figura em contraluz.
Posso ajudar-vos em alguma coisa?, murmurou a silhueta. Mateo Colombo, que por
imposição do tribunal se viu forçado a fazer voto de silêncio, calou-se
cautelosamente enquanto se aproximava um pouco mais da janela. Só então pôde discernir
que aquela figura de pé contra o sol era o seu amigo, messere Vittorio.
Estais louco, quereis porventura acabar preso como eu?, murmurou, e com um
gesto nada hospitaleiro sugeriu que se afastasse de imediato.
Messere
Vittorio passou a mão pelas grades
da janela e estendeu ao amigo uma bota com leite de cabra e uma taleiga com
pão. Com um gesto de aborrecimento, quase a contragosto, Mateo Colombo
recolheu-as. Na verdade, estava com fome. Quando o furtivo visitante girou
sobre os calcanhares e já se dispunha a dirigir-se para a capela, ouviu um novo
sussurro: podeis enviar uma carta para Florença com um mensageiro? Messere Vittorio titubeou por um instante. Podíeis
ter-me pedido coisa mais fácil..., sabeis com quanto zelo o reitor revista a
correspondência..., naquele momento, os dois homens viram Alessandro de Legnano
conferindo, do vão da porta da capela, se todos estavam presentes na missa. Bem,
dai-me a carta. Agora tenho que ir-me, disse o messere Vittorio, passando a mão por entre as
grades. Ocorre que ainda não a escrevi. Se pudésseis passar por aqui à saída da
missa...
O reitor divisou, então, messere Vittorio de pé sob a arcada. O que estais fazendo aí?, inquiriu,
pousando as mãos nos quadris e franzindo o cenho ainda mais do que já o tinha
por natureza. O messere Vittorio ajeitou as tiras da sua sandália e
encaminhou-se para a capela. Porventura faláveis com vosso sapato? O messere limitou-se a corar, com um sorrisinho
estúpido. Mateo Colombo contava com o escasso tempo de duração da missa para
escrever a carta. Quando se certificou de que não havia ninguém fora da capela,
voltou a retirar o caderno que mantinha escondido sob a pequena scriptoria, era-lhe proibido escrever, empunhou a pena
de ganso, mergulhou-a no tinteiro e, na última página, começou a anotar. Por
certo, o voto de silêncio que o tribunal lhe impusera não era um castigo
arbitrário; tinha um fundamento muito preciso: evitar que o seu satânico
descobrimento se propagasse como as sementes ao vento. Pela mesma razão haviam proibido
que escrevesse. Restava-lhe pouco tempo. Tornou a certificar-se de que não
havia ninguém por perto e então começou a escrever:
Minha
senhora
O meu espírito se debate no
abismo da incerteza e se oprime na amargura de quem, tendo feito a promessa de
segredo em Nome de Deus, ofende o sagrado Nome quando, injustamente,
pretende-se velar a Obra Divina. É em Nome de Deus, minha querida Inês, que
decidi quebrar os votos de silêncio que me foram impostos pelo reitor da
Universidade de Pádua e pelos Doutores da Igreja. Temo menos a morte do que o
silêncio. Embora, no que diga respeito a mim, eu esteja condenado tanto a um
quanto ao outro. Quando esta carta chegar a Florença já não estarei com vida.
Passei a noite redigindo o arrazoado que irei expor amanhã diante do tribunal
presidido pelo cardeal Caraffa. Contudo, bem sei que, antes de poder pronunciar
uma só palavra a meu favor, a sentença já estará decidida. Sei que não tenho
outro destino senão a fogueira. Se pensasse que vós pudésseis interceder por
minha vida nessa paródia de processo, sem duvidar eu vo-lo pediria, tantas
coisas já vos pedi que, mais uma..., porém sei que a minha sorte está decidida.
A única coisa que vos suplico agora, é que me escuteis. Mais nada. Quiçá
vos pergunteis por que razão admito revelar o meu segredo somente a vós. Mas
ocorre que, embora ainda não o saibais, fostes a fonte dos descobrimentos que
me foram revelados. Depende de vós agora. Se considerais que estou
cometendo sacrilégio por dizer o que jurei silenciar, detende agora mesmo a
leitura, e que estes papéis acabem no fogo. Se porventura ainda mereço um pouco
de crédito e haveis decidido prosseguir a leitura, peço-vos, em Nome do próprio
Deus, que guardeis o segredo.
Antes de prosseguir a carta, Mateo Colombo hesitou por uns
instantes. O tempo era curto. A missa devia estar no meio. Esfregou os olhos,
remexeu-se na cadeira e, antes de continuar escrevendo, perguntou a si mesmo se
não era uma loucura». In Federico Andahazi, O Anatomista, 1997,
Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1998, ISBN
978-972-232-362-8.
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