domingo, 6 de janeiro de 2019

A Traidora do Trono. Alwyn Hamilton. «Tampouco era a camisa, que eu havia pedido emprestada de Shazad e nunca me dera ao trabalho de devolver»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Príncipe Estrangeiro
«(…) Uma cidade se ergueu contra o sultão, clamando à noite pelo nome do príncipe rebelde, mas acordou com os olhos vazios dos mortos. E a Bandida de Olhos Azuis foi atingida por uma bala numa batalha nas montanhas, ficando gravemente ferida. Ali, pela primeira vez desde que os seus caminhos se cruzaram, a Bandida de Olhos Azuis e o príncipe estrangeiro separaram-se. Enquanto ela lutava pela vida, ele foi enviado para a fronteira ocidental do deserto, onde um exército de Xicha estava acampado. O príncipe estrangeiro roubou um uniforme e entrou no acampamento xichan como se fosse um deles. Foi fácil permanecer ali, onde nem parecia estrangeiro. O príncipe estrangeiro ficou ao lado deles enquanto lutavam contra as forças do sultão, espiando em segredo para o irmão. E por um tempo tudo correu bem para ele, escondido em meio ao exército xichan.
Até que um mensageiro usando o branco e dourado do sultão e carregando uma bandeira de paz trouxe uma carta. O príncipe estrangeiro teria matado para saber o que dizia e poder contar tudo aos seus aliados, mas não foi preciso. Todos sabiam que ele falava a língua do deserto, por isso foi convocado à tenda do general xichan para ser intérprete da conversa com o mensageiro do sultão, nenhum deles ciente de que se tratava de um inimigo. Na mensagem, o sultão pedia um cessar-fogo. Ele dizia estar cansado do derramamento de sangue e se mostrava pronto para negociar. O príncipe estrangeiro descobriu que o sultão estava convocando todos os governantes estrangeiros para tratar de uma nova aliança, qualquer rei, imperador ou príncipe interessado no seu deserto poderia ir até ao palácio apresentar os seus argumentos.
A carta foi enviada ao imperador xichan na manhã seguinte. O combate cessou. Em seguida, viriam as negociações. Então a paz. Sem a necessidade de proteger as suas fronteiras, os olhos do sultão se voltariam para o seu território novamente. O príncipe estrangeiro entendeu que havia chegado a hora de voltar para o lado do seu irmão. A rebelião estava prestes a se transformar numa guerra.
                                
Eu gostava daquela camisa. Era uma pena que estivesse encharcada de sangue. A maior parte do sangue não era minha, pelo menos. Tampouco era a camisa, que eu havia pedido emprestada de Shazad e nunca me dera ao trabalho de devolver. Agora ela dificilmente ia querê-la de volta. Pare! Obedeci de imediato. Minhas mãos estavam atadas, e a corda arranhava a pele em carne viva dos meus punhos. Xinguei baixinho enquanto inclinava a cabeça para trás, enfim desviando o olhar das botas empoeiradas para encarar o brilho do sol do deserto. As muralhas de Saramotai produziam uma sombra longa e imponente com a última luz do dia.
Esses muros eram lendários. Haviam permanecido indiferentes a uma das maiores batalhas da primeira guerra, entre o herói Attallah e a Destruidora de Mundos. Eram tão antigos que pareciam ter sido erguidos com os ossos do próprio deserto. Mas as palavras pintadas de forma descuidada em tinta branca sobre os portões eram novas. Bem-vindos à Cidade Livre.
Dava para ver que a tinta escorrera entre as rachaduras das pedras antigas antes de secar com o calor. Eu tinha algumas coisas a dizer sobre ser arrastada à força, amarrada como uma cabra num espêto, para um lugar chamado de Cidade Livre, mas até eu sabia que era melhor ficar quieta. Se apresente ou vou atirar!, alguém gritou do muro da cidade. As palavras eram bem mais impressionantes do que a voz que as pronunciara. A rouquidão da juventude era audível. Apertei os olhos atrás do sheema e avistei o garoto magricela apontando uma espingarda para mim do alto da muralha. Não devia ter mais do que treze anos. Era puro osso. Não parecia capaz de segurar a arma direita mesmo que a sua vida dependesse disso. E provavelmente dependia, já que estávamos em Miraji. Somos nós, Ikar, seu idiota, gritou no meu ouvido o homem que me segurava». In Alwyn Hamilton, A Traidora do Trono, A Rebelde do Deserto 2, 2016/2017, Editora Seguinte, Companhia das Letras, ISBN 978-855-534-029-1.

Cortesia de ESeguinte/CdasLetras/JDACT