quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O Evangelho Segundo Lázaro. Richard Zimler. «Quando éramos crianças, costumava dizer que eu cheirava a pão de cevada quente. Lembro-me disso agora, tal como me lembro do meu nome…»

jdact

«(…) Ele retira a mão do meu peito e acaricia-me a face. Shalom Aleikhem, dodi, murmura. A paz seja contigo, bem-amado. Sabe aramaico, o que me conforta. A barba que desponta torna-lhe as faces ásperas, e o cabelo castanho, que lhe dá pelos ombros, está todo emaranhado. Mostra-me um sorriso cansado mas feliz. Gostaria de se abandonar e rir o riso exausto de um homem que tem estado a chorar, penso. A neblina do esquecimento dentro de mim levanta-se nesse momento e reconheço-o. Contudo, parece mais velho do que me recordo, e desgastado no corpo. Será que está doente? Quando estendo a mão, com a intenção de lhe tocar na testa para ver se tem febre, ele agarra-ma e beija-a como se nos tivéssemos perdido um do outro há muitos anos. Respondi-te escondido no trovão, diz, tal como sempre nos saudávamos desde a infância. É uma citação do nosso versículo preferido dos Salmos. Onde estamos? Formulo a pergunta com os lábios, pelo menos, é essa a minha intenção, mas por qualquer motivo não consigo fazer-me entender.
Yeshua mostra-me uma expressão confusa. Em breve serás tu outra vez, diz-me. E nós vamos todos ajudar-te. Perscruto os rostos à minha volta, contando-os, catorze. De cada lado de Yeshua estão os meus velhos amigos, Miriam de Magdala e Yohanon ben Zebedee. Yohanon cortou o cabelo negro e espesso tão curto que parece ter posto uma touca jónica. Dirige-me um sorriso encorajador através das lágrimas. Os olhos delineados a kohl de Miriam parecem pisados. Traz vestida a sua túnica cor de açafrão, uma oferta de Yeshua, mas agora parece demasiado grande para ela, dificultando-lhe os movimentos. Por trás dela, trajando uma elegante toga e apertando o nariz, encontra-se Nicodemus ben Gurion, um dos benfeitores de Yeshua. Olha para mim com ar de quem tem medo de que eu seja um impostor. Será possível que eu tenha mudado tanto que pareça outro?
Ao fundo, mais altos do que os outros todos, estão os meus primos de Alexandria, os gémeos Íon e Aríston. Íon, o mais ousado dos dois, acena-me e sorri-me, com os seus modos agarotados. Miriam desvia-me os olhos dele quando ergue as mãos para me abençoar. Apercebo-me de um desenho cor de vinho do Zodíaco na palma da sua mão e tento perguntar-lhe o que é, mas tudo o que me sai da garganta é um som seco e arranhado. Começo a ficar ansioso por ver a minha mãe e o meu pai, mas não me parece que estejam connosco. Só tomo consciência de que estou a chorar quando sinto nos lábios um sabor salgado. A mulher dos membros longos, que agora reconheço como sendo a minha irmã Mia, pega-me na mão e coloca-a sobre o rosto, inalando profundamente o meu cheiro, mas em breve começa a tossir. Quando éramos crianças, costumava dizer que eu cheirava a pão de cevada quente. Lembro-me disso agora, tal como me lembro do meu nome, mas há muitas outras coisas que ainda me escapam. Será que estamos todos reunidos para o funeral do meu pai?
Onde estão os nossos pais?, consigo perguntar-lhe num sussurro rouco. Vai correr tudo bem, responde Mia. Não deves preocupar-te. Passa o braço à volta do velho que está ao seu lado. O avô Shimon atreveu-se a sair de casa para estar aqui contigo, diz-me em voz alegre. Em seguida, aponta-me a mulher pequena e de ar cansado que segura um bocado de tecido sobre a boca. A Marta também cá está, claro! Vieram muitos amigos. E o teu filho e a tua filha. Com um aceno da mão, chama-os para junto de si. Nahara treme. Está com o mesmo ar que tem quando é arrancada ao sono pelo som do trovão. Yirmiyahu, o irmão mais velho, o jovem de cabelo comprido e olhos ansiosos, pega-lhe ao colo, para ela ficar à minha altura. Nahara lança-me os braços à volta do pescoço. Abençoada seja a bondade do Senhor; quando se põe a soluçar, consigo dominar a tremura das mãos o tempo suficiente para lhe afagar o cabelo castanho e macio, embora o meu toque a faça chorar ainda mais». In Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-854-7.
                                                            
Cortesia de PEditora/JDACT