As
Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Porém, com quem podíamos falar?,
questionou-se ela. Todos os presentes em Astorga, no dia da morte do conde Henrique,
estavam mortos. Dona Teresa e dona Urraca, Egas Moniz e Paio Soares, bem como Martinho
de Soure, nenhum nos podia esclarecer. É um beco sem saída..., murmurei. Contudo
e após esta conversa, durante o funeral de meu pai vi o monge Leopoldo
Cárquere, que me estimulou a curiosidade. No final da cerimónia, chamei Chamoa e
Teresa Celanova e apresentámo-nos ao desconhecido. Chamoa... Sois filha de
Gomes Nunes e Elvira Peres Trava. Conheci ambos em Cárquere..., disse o monge. Os
meus pais foram ao mosteiro?, espantou-se Chamoa.
Leopoldo, ligeiramente embaraçado,
não a esclareceu directamente, mas contou que ricos-homens, cavaleiros-vilãos ou
até nobres senhoras depositavam em Cárquere meninos e meninas que não tinham quem
cuidasse deles. Vosso pai fê-lo também, afirmou o monge, olhando para mim. De
repente, uma dúvida assaltou-me. Teria Egas Moniz levado a Cárquere uma criança
aleijadinha, trocando-a por outra saudável? Seria o verdadeiro Afonso Henriques
um órfão do mosteiro? Com um inesperado desagrado a moer-me as entranhas, perguntei
quando se dera essa ocorrência e o monge disse que fora logo após a primeira
viuvez de meu pai. Egas Moniz foi lá deixar uma menina, contou ele. Ainda lhe
perguntei se sabia de alguma troca de meninos, mas infelizmente o monge foi chamado
pelo arcebispo João Peculiar e despediu-se de nós sem nos esclarecer. Um beco sem
saída, repetiu Chamoa.
Fascinado com a possibilidade de
existirem segredos desconhecidos no Mosteiro de Cárquere, comentei: órfáos,
filhos ilegítimos e rejeitados. Crianças perdidas... Com educada subtileza, Leopoldo
revelara a existência de uma filha bastarda de meu pai, insinuando igualmente que
os pais de Chamoa tinham pecadilhos que haviam sido depositados em Cárquere sem
alarido. Temos de visitar o mosteiro!, exclamei. Novamente entusiasmados, decidimos
que, mal a comitiva real abandonasse Lamego, iríamos até Cárquere, que não ficava
longe. Só que tal não foi possível, pois Afonso Henriques exigiu que
voltássemos de imediato a Coimbra, onde queria proceder às nomeações de Peres Cativo
e de Pêro Pais, como os novos mordomo e alferes do reino.
Preciso de vós, Lourenço Viegas,
para acalmar Gonçalo Sousa!, exigiu o rei de Portugal, virando-se depois para
Chamoa: e quero-vos junto ao vosso filho, quando o fizer alferes! A ida a
Cárquere teve, pois, de ser adiada, mas felizmente por pouco tempo.
Coimbra, Setembro de 1146
A escolha de Peres Cativo para
novo mordomo incomodou fortemente Gonçalo Sousa, mas, ao contrário do que esperávamos,
este não se demitiu do posto de alferes das tropas portucalenses. Limitou-se a partir
de Coimbra, deixando Afonso Henriques num limbo incómodo, impedindo-o de nomear
Pêro Pais. Sacana do Sousão!, enxofrou-se Chamoa. Permanecera na corte para
defender os interesses do filho, mas não via a ascensão deste consumar-se e a
sua irritação cresceu ainda mais quando lhe chegou outra novidade: a rainha
Mafalda da Sabóia estava de esperanças. Grávida?, balbuciou Chamoa, quando a
informei. Um herdeiro real saltaria de imediato para o primeiro lugar da linha sucessória.
Ali estava, em todo o seu esplendor, o azar que dona Justa dizia fustigar Chamoa:
o seu Fernando Afonso ia ser ultrapassado.
O meu menino nunca será rei, Virgem
Santíssima!
Dias depois, Afonso Henriques foi
visitar Chamoa à casa desta. Mafalda da Sabóia estabelecera uma regra implacável:
enquanto a gravidez durasse, não podia ser filhada, com receio de perder o rebento.
O rei aceitara a dura provação, mas decidira regressar à cama da barregã». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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