terça-feira, 22 de janeiro de 2019

As Crianças de Cárquere. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «O almocreve promovido a cavaleiro andava a recuperar as ruínas de Almourol. Talvez a sua ausência permitisse a Pêro Pais deixar Coimbra por uns tempos»

jdact

As Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Serei sempre vossa, aprovou Chamoa. Agradado, Afonso Henriques comparou-a com a rainha. A francesa é um peixe frio, mas vós sois um tição! A minha cunhada sentiu-se melhor do que a outra.
Pode ser rainha, mas não o mima como eu!
Emocionada, Chamoa imaginou um ano de encontros assim. Com a rainha fora de combate, era certo e seguro que Afonso Henriques viria à sua cama muitas vezes. De rabo levantado e cara enfiada nas almocelas, chegou a fantasiar engravidar de novo, dando-lhe mais um filho. Tal era a sua loucura que só tarde de mais ouviu o barulho de alguém a entrar. Afonsô, tu est la?, berrou Mafalda. Chamoa gelou, enquanto Afonso Henriques continuava a fustigá-la com fervor, só se apercebendo de que fora apanhado em flagrante quando a porta do quarto se abriu. Tu est avec la vache?, vociferou a princesa da Sabóia. O que se seguiu foi uma enorme confusão. Mafalda, totalmente transtornada, desatou às estaladas, acertando ora nas pernas nuas do rei de Portugal, ora nas de Chamoa. La pute, je vais la tuer!, gritava Mafalda. O meu amigo gigante obrigou-a a sair daquela casa, deixando sozinha Chamoa, confusa e abandonada.
Que vergonha, Virgem Santíssima!
Em lágrimas, a minha cunhada deu-se conta das implacáveis ironias do destino. Anos antes, descobrira Afonso Henriques na cama com Elvira Gualter. Agora, os papéis invertiam-se. De legítima enganada, passara a amante adúltera.
Que tola sou, não ganhei nada, só perdi.
As mulheres grávidas ficam diferentes..., resmungou Afonso Henriques, quando me mandou chamar. A rainha perturbara-se, por isso fizera uma cena. Mas o verdadeiro problema era o adultério real já ser público e julgado escandaloso. Tanto o arcebispo de Braga, João Peculiar, como o prior Teotónio, de Santa Cruz, consideravam inaceitável tanta pouca-vergonha, apontando o dedo à duvidosa Chamoa. E mesmo Peres Cativo, sempre tão tolerante com histórias de cama, avisou que, se cena assim se repetisse, Pêro Pais nunca chegaria a alferes.
Chamoa que vá para Tui por uns meses, comunicou-me Afonso Henriques. Que leve dona Justa e os filhos, incluindo o Pêro Pais! Como era costume, fui o encarregado de dar as más notícias. Sem surpresa, a minha cunhada aceitou o seu triste fadário, avisando-me apenas de que seria difícil Pêro Pais acompanhá-la, pois andava a divertir-se em Coimbra com as três moçárabes. Ide convencê-lo, dizei-lhe que Mem não está cá,
sugeriu ela.
O almocreve promovido a cavaleiro andava a recuperar as ruínas de Almourol. Talvez a sua ausência permitisse a Pêro Pais deixar Coimbra por uns tempos. Não está, mas pode voltar!, contestou este. O filho mais velho de Chamoa, prestes a cumprir vinte anos, atingira o apogeu do seu convencimento masculino. Galanteador e bem-parecido, conquistava corações femininos onde quer que fosse e tinha em Coimbra uma lista de amigas vasta, onde se incluíam filhas de lavradores, criaditas, meninas mais atrevidas de boas famílias e, está claro, as três moçárabes que Mem trouxera de Lisboa. Põem-se todas de gatas à minha frente, gabava-se o meu sobrinho.
Com um atrevimento invulgar e uma energia permanente, Pêro Pais saltitava de colo em colo, todas filhando com gosto. Ainda por cima, já era conhecida a sua futura nomeação como alferes, o que multiplicara o desejo das moças e mesmo o de mulheres mais velhas. Pelam-se por jovens guerreiros..., explicava ele. Naturalmente, não queria abrir mão de tanto benefício, nem criar um vazio que aproveitasse a Mem. Apesar dos seus quarenta anos, o antigo almocreve era agora mais apetecível, devido ao recuperado castelo e ao recente título de cavaleiro. Ainda leva as moçárabes para Almourol.., resmungou Pêro Pais». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9

Cortesia da CasadasLetras/JDACT