terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «Colin e François sobem para as montadas de um salto, e, fendendo a turba e a sua vaga de injúrias, avançam direitos à saída da cidade. Pagam o direito de passagem…»

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«(…) A doçura das margens do Loire, a palidez triste das planícies do norte foram conciliadoras. Vergaram-se sempre, docilmente, à rima. Mas como se adaptará Villon à rudeza escaldante das pedras, a esta luz brutal e sem compromisso? François apruma-se, enfrentando o rutilar do sol, sentindo o vento quente assar-lhe as faces. É uma provocação que o arrebata. Colin avança à frente, sobrepujando de pelo menos uma cabeça árabes, genoveses e persas. Dir-se-ia um pavão atravessando um pátio de galinhas. Penetra ao acaso numa ruela inundada de turbantes e de elmos. François pega no bornal e alcança-o a passo de corrida. Dá com ele a discutir já o preço de duas éguas com um nómada intratável que não para de sacudir a cabeça numa recusa exasperada.
Colin gesticula, procurando um movimento do braço que signifique abatimento. O nómada não se demove, apontando obstinadamente no ábaco a quantia que reclama. Enquanto Villon sorri com ar ameno e tenta mostrar-se cativante, Colin torna-se bruscamente ameaçador e debruça-se de toda a sua altura sobre o pobre mercador. O preço desce. Colin e François escolhem as selas. Estas estão bordadas de motivos variados, tecidos e coloridos pelas mulheres do deserto. Colin ordena ao alquilador que corte os tufos de lã entrançada que pendem dos arreios. Villon apressa-o nervosamente, aconselhando-o a não se demorar. Formou-se um ajuntamento à volta do vendedor enfurecido pela falta de boas maneiras dos estrangeiros. Estava disposto a ceder-lhes as bestas por um preço muito inferior ao que eles acabam de lhe pagar. Não é essa a questão. Mas o modo como negociam! É necessário dar tempo ao tempo, parlamentar, desdenhar, choramingar, ameaçar e a seguir aceder, como querem os usos. O público aquiesce, indignado.
Colin e François sobem para as montadas de um salto, e, fendendo a turba e a sua vaga de injúrias, avançam direitos à saída da cidade. Pagam o direito de passagem, deixam para trás a ronda sem percalços, descobrem à sua frente uma planície árida que se desdobra a perder de vista. Villon consulta o mapa que o noviço genovês lhe entregou. O sol está ainda alto. Poderão cobrir a distância antes do cair da noite. Atravessando a galope dunas e charnecas, os dois homens atingem as primeiras vertentes da Galileia. Colin cavalga na dianteira, evitando os caminhos batidos e os pequenos povoados, voltando-se amiúde para inspeccionar as cristas em redor. As lazãs estão babadas de fadiga. Vai ser necessário parar, procurar uma fonte. Do fundo de um olival, um camponês árabe observa aqueles cavaleiros que fazem assobiar o silêncio e se afastam velozmente no meio de uma nuvem de poeira. Espera que assente a última cortina de pó antes de se absorver de novo nas corveias da terra. Tenta não pensar mais no assunto. De que lhe poderia servir fazê-lo? E todavia, uma pequena parte do seu ser continua a cavalgar com eles, secreta, como que arrancada pelo vento.
Colin faz subitamente um sinal de alto. Poisa um dedo nos lábios. Um murmúrio longínquo, sacudido, aflora os tímpanos. Um turbilhão de areia sobe por cima das moitas que debruam o vale. Aparece uma tropa de soldados mamelucos. As suas lanças esguias, firmadas nas esporas, dir-se-iam as antenas de um enxame de abelhas. Cintilam brilhos luminosos nos tons de cobre dos cones dos seus elmos. Apesar da distância, Colin e François apercebem-se de que o destacamento toma pelo sulco que eles próprios acabam de traçar entre as sarças. Sem uma palavra, os dois homens correm a toda a brida na direcção das colinas.
Ao fim da tarde, aproximam-se do ponto assinalado pelo seu mapa. Parece a Provença, grita Colin erguendo a voz acima do som dos cascos. Não podias dizer melhor. Olha, ali em cima! Uma cruz recorta-se no céu. Por Deus, sim, versejador, a nobre cruz de Cristo! Colin abranda imediatamente o trote. Endireita-se, bem alçado, na sela e começa a sacudir o pó do seu traje. François imita-o. Tomam os dois um ar de notáveis apesar do calor asfixiante e atacam bravamente a ladeira íngreme que parece levá-los na direcção das nuvens. Chegados ao alto do promontório, descobrem um corpo de edifícios em mau estado. À entrada, com os braços cruzados, um homem aguarda. À volta dele, saltitam galinhas famélicas, que trocam bicadas, fazem alarido e cacarejam». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT