sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

O Anatomista. Federico Andahazi. «O reitor tinha a perfeita expressão do idiota: as faces inflamadas, um severo prognatismo (conformação da face em que as maxilas são alongadas, em especial com o maxilar inferior mais saliente) que dava baseamento ao rosto…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Aquele ia ser o começo da tragédia. Se soubesse que o que estava por revelar a Inês de Torremolinos acabaria resultando pior do que a morte e o silêncio, não teria escrito uma só palavra mais. Não obstante, voltou a mergulhar a pena no tinteiro. Acabava de pôr o ponto final na carta quando viu que todos começavam a sair da capela.
Mateo Colombo arrancou o fólio do caderno e dobrou-o de maneira tal que o verso ficasse voltado para fora. Primeiro saíram em silencioso tumulto os estudantes, que, do centro do pátio, distribuíam-se em pequenos grupos para as salas de aula. Por último saiu o messere Vittorio e, junto com ele, Alessandro Legnano. Messere Vittorio deteve-se no átrio e, com uma inclinação de cabeça, despediu-se do reitor. Mateo Colombo, pela janela do seu claustro, pôde ver como o reitor permanecia parado junto ao messere e não se afastava dele. Viu que o reitor, reclinado sobre uma coluna, iniciava um de seus habituais interrogatórios. Não chegava a ouvir o que estavam falando, mas o anatomista conhecia bem os gestos inquisitoriais de Alessandro Legnano, de mãos nos quadris e franzindo o cenho mais do que habitualmente. O anatomista já havia perdido toda a esperança de entregar a carta ao messere quando, surpreendentemente, o reitor se afastou em direcção ao seu claustro. Messere Vittorio aguardou um pouco mais e, quando se certificou de que não havia ninguém no pátio ou perambulando pela arcada, encaminhou-se directamente e com passo rápido para a janela do claustro do anatomista. Mateo Colombo jogou então a carta pelas grades. Messere Vittorio empurrou-a com o pé até afastá-la o bastante, acocorou-se e guardou o papel entre o calcanhar e a sola da sandália. Nesse preciso momento, do fundo da arcada, surgiu Alessandro Legnano.
Parece que é hora de substituir o vosso calçado, disse o reitor e, antes que messere Vittorio pudesse ensaiar uma resposta, acrescentou: espero-vos na oficina, e depois girou sobre o próprio eixo e perdeu-se fora da arcada. Messere Vittorio bem que gostaria nesse instante de ver o reitor morto, desejo que, de certo modo, haveria de ver realizado.
                     
A cabeça de Alessandro Legnano jazia sobre a mesa de messere Vittorio olhando para o tecto da oficina, olhando, por assim dizer, pois que na realidade os olhos eram duas esferas inertes. O mestre passou a palma da mão pela testa do reitor, que parecia decapitado, deteve-se na dobra do cenho, encostou ali o cinzel e descarregou uma marretada seca, surda, que levantou uma poeira que parecia óssea. O reitor apresentava a rigidez dos mortos, mas a sua expressão era a dos vivos. Estava, contudo, gelado. Muito mais frio do que um morto. Meio ano empregou o messere para concluir o busto de Alessandro Legnano, que acabava de levantar-se da banqueta onde estava posando e caminhou até a escultura com a qual se homenageava. Contemplou-se e, nariz contra nariz, parecia estar diante de um espelho de mármore de Carrara. O mestre obtivera a exacta expressão do seu cliente, e qualquer pessoa que se detivesse para ver o busto sentiria a mesma repugnância que se experimentava diante do próprio reitor. Foi exactamente o que ocorreu ao messere Vittorio nos últimos seis meses e, sem dúvida, não lhe faltavam desejos de enfiar o cinzel na testa do próprio Alessandro Legnano, sobretudo depois de ouvir o seu veredicto: já vi coisas piores, disse, enquanto se contemplava com paradoxal desdém e quase jogava na cara do messere os quinze ducados. Que o levem esta tarde para o meu escritório, acrescentou, enquanto girava sobre os calcanhares e se retirava da oficina batendo a porta com força. O busto que o messere Vittorio acabava de concluir era fiel ao modelo. O reitor tinha a perfeita expressão do idiota: as faces inflamadas, um severo prognatismo (conformação da face em que as maxilas são alongadas, em especial com o maxilar inferior mais saliente) que dava baseamento ao rosto sobre uma espécie de varanda maxilar e umas pálpebras semifechadas que lhe conferiam um ar sonolento. O mestre florentino não usara de nenhuma benevolência; se os clientes eram do seu agrado, tinha a generosidade de embelezá-los um pouco, como fizera, por exemplo, com o perfil irremediável de certo ilustre próximo aos Médici. Mas a escultura de Alessandro Legnano era uma verdadeira opinião do messere a respeito de Alessandro Legnano». In Federico Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 1998,  ISBN 978-972-232-362-8.

Cortesia de EPresença/JDACT