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Os
Reféns. 1147
Lisboa, Setembro de 1147
«(…) Lisboa tem de cair, senão...,
murmurei. Preocupado, o rei enviou-me ao campo dos flamengos e dos alemães, para
averiguar do andamento da nova mina. Parti depressa e a cavalo, com Pêro Pais e
Gualdim. Haviam sido abertas cinco entradas para confundir os mouros, que assim
não iam perceber qual a verdadeira. Com mais de vinte passos de largura, o túnel
iniciava-se perto da Porta do Sol e terminava no interior da alcáçova, debaixo da
Cerca Moura. Só faltam cinquenta passos, explicou Gistelles. Quando podem
rebentar a mina?, perguntei. O chefe flamengo suspirou. Sabia da revolta dos ricos-homens
portucalenses, mas precisava de duas semanas, o que era de mais. A mina não ia evitar
a cisão dos nossos exércitos. Nem a torre paga por Afonso Henriques, que os normandos
terminavam à pressa. Os sacanas são duros de roer..., resmungou Gistelles. Nesse
momento, um escudeiro dele veio avisar-nos de que junto ao Tejo tinha sido aprisionada
uma moura com uma criança, bem como um homem que se dizia um cavaleiro portucalense.
Ide ver do que se trata, sugeriu Gistelles. Descemos até à beira-rio e, apesar de
a noite estar escura, a luz dos archotes iluminou a cara dos recém-chegados e o
meu coração deu um pulo. O homem era Mem e a mulher, a princesa Zaida, que trazia
a filha Maryam. Vou levar-vos ao rei, disse-lhes, depois de um abraço emocionado.
Pelo caminho, Mem contou-nos a tomada
de Silves por Ibn Wasir, a morte de Ibn Qasi e a fuga difícil dos três. Atrás dele,
reparei que Zaida não falava. Notara a forma diferente como estava vestida, com
um manto escuro a tapá-la, mas o que mais me impressionou foi a ausência de sorrisos.
A princípio, atribuí essa rigidez à infelicidade pela morte de Ibn Qasi, mas Mem
esclareceu-me. O filho de uma cadela deu cabo da Zaida. O espírito alegre e meigo
da princesa, que eu conhecera e tanto estimara em Coimbra, ensombrara-se.
Perdera o riso, a leveza, a graça feminina e o atrevimento físico. Antes, vestia
transparências e alifafes coloridos, mostrava as pernas, os braços, até o peito,
a voz doce enfeitiçava e o olhar era uma terra prometida de mistérios entusiasmantes.
No presente, nada disso existia: a mudez impunha-se, o rosto fechava-se, o olhar
perdia-se, o manto cobria-a. Parece bem, mas está morta, lamentou Mem.
Nada acontecera entre eles após a
fuga de Silves. A doçura do passado e a vontade de unir os corpos não
reaparecera. E não era do desgosto, pois ela já não se dava ao marido, contou Mem,
antes de descrever a lenta agonia que Zaida vivera, vergastada pela rigidez do
Islão, constantemente reprimida em Tinmel e depois em Silves, onde um fanatismo
estúpido e inculto lhe degradara a vida. Ibn Wasir foi mais esperto, comentou
Mem. O homem que agora dominava o Al-Gharb e parte da Andaluzia fingia ser um fervoroso
crente das doutrinas dos almóadas, para conseguir o apoio militar destes, mas depois
dava às gentes locais liberdade e aceitava manter os costumes andaluzes mais antigos.
Já o marido de Zaida, na ânsia de agradar ao líder de Tinmel, obrigara as gentes
de Silves e Mértolaao cumprimento de normas que nada lhes diziam e estas haviam-no
rejeitado. Ou encolhido por dentro, como Zaida.
Princesa, lamento a vossa perda, disse
Afonso Henriques, ao vê-la entrar na sua tenda. Abraçou-a, mas ela ficou atrapalhada,
como se aquele fosse um gesto proibido, enquanto ele se lamentava por não ter aceitado
a paz de Zaida. Em tempos, a bela princesa sugerira um casamento entre os dois para
unir o Condado Portucalense à Andaluzia, mas o meu melhor amigo rejeitara essa quimera
inviável. Tanta guerra e tristeza se teriam evitado... Zaida nada disse, pois
ainda estava habituada a calar as opiniões em frente do marido. Só se interessou
quando o rei de Portugal confessou não ter tido sorte no casamento. De repente,
notei um novo brilho no seu olhar, enquanto dava os parabéns ao rei pelo matrimónio
e pelo nascimento do primeiro filho legítimo. A francesa é uma maçadora, resmungou
o rei. Zaida sorriu levemente e perguntou: e Chamoa? Sei que vive em Coimbra. O
meu melhor amigo encolheu os ombros: continua a mesma tola de sempre. Meteu na cabeça
que fui trocado em pequenino com o Lourenço... Tossi, enervado com a forma leviana
como ele resumia a intriga de Compostela, mas Afonso Henriques não me ligou, dizendo-se
perplexo com a súbita amizade entre Chamoa e Mafalda da Sabóia. Odiavam-se, mas
agora dão-se bem!
A princesa sorriu e murmurou: mulheres...
O rei olhou-a demoradamente e depois perguntou: que desejais, princesa Zaida? Quero
fazer-vos um pedido, disse ela, baixando a voz. Afonso Henriques aproximou-se mais
dela e apreciou: continuais tão bela... Nesse momento, a antes tão pálida e séria
Zaida corou. Deixem-nos, ordenou o rei. A meu lado, Mem franziu a testa,
irritado. Contudo, nada podia fazer. Eu e ele abandonámos a tenda e só dias depois
conheci o refinado estratagema que o rei de Portugal engendrou com a princesa. Já
a sós com Afonso Henriques, Zaida disse-lhe: tenho pena de não me ter casado com
vós…» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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