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Keter
«(…) E que era aquele aparelho para estudar a
fermentação pútrida, de 1781, bela alusão aos putrefactos bastardos do
Demiurgo? Uma sequência de tubos vítreos que saindo de um útero em forma de
bola passam por esferas e condutos, sustentados por forquilhas, para dentro de
duas ampolas, e transmitem uma essência qualquer de uma para outra através de
serpentinas que desembocam no vácuo... Fermentação pútrida? Balneum Mariae,
sublimação do hidrargírio, mysterium conjunctionis, produção do Elixir!
E a máquina para estudar a fermentação (de novo) do
vinho? Um conjunto de arcos de cristal, que vai de atanor a atanor, saindo de
um alambique para terminar em outro? E aqueles óculos minúsculos, a diminuta
clepsidra e o reduzido electroscópio, a lente, o bisturi de laboratório que
lembra um dos caracteres cuneiformes, a espátula com alavanca de expulsão, a
lâmina de vidro, o cadinho de terra refractária de três centímetros para
produzir um homúnculo do tamanho de um gnomo, útero infinitesimal para
clonações, os estojos de acaju cheios de pacotinhos brancos, iguais aos
papelotes dos boticários do interior, envoltos em pergaminhos vincados de
caracteres intraduzíveis, como espécimes mineralógicos (assim se diz), mas na
verdade fragmentos da Síndrome de Basilides, relicários com o prepúcio de
Hermes Trismegisto, e o martelo de tapeceiro comprido e fino para bater o
início de um brevíssimo dia de juízo, uma hasta de quintessências a realizar-se
entre o Pequeno Povo dos Elfos de Avalon, o inefável e miniatural aparelho para
analisar a combustão dos óleos, os glóbulos de vidro dispostos em pétalas de
quadrifólios, e outros quadrifólios coligados uns aos outros por tubos de ouro,
e os quadrifólios a outros tubos de cristal, e estes a um cilindro de cobre, e
ainda, a prumo em baixo, um outro cilindro de ouro e vidro, e mais tubos,
descendentes, apêndices pênseis, testículos, glândulas, excrescências,
cristas... É esta a química moderna? E por causa disto acontecia guilhotinarem
o autor, quando se sabe que nada se cria e tudo se transforma? Ou o matavam
para fazê-lo calar sobre aquilo que fingia revelar, como Newton, que estendeu-nos
tantas asas, mas que continuava a meditar sobre a Cabala e as essências
qualitativas?
A sala Lavoisier do Conservatoire é uma confissão, uma
mensagem cifrada, um epitome do próprio conservatório, irrisão do orgulho do
forte pensamento da razão moderna, sussurro de outros mistérios. Jacopo Belbo
tinha razão, a Razão estava errada. Devia apressar-me, iminente a hora. Lá
estavam o metro, o quilo, as medidas, falsas garantias de garantia. Eu
aprendera com Aglié que o segredo das Pirâmides é revelado não pelos cálculos
em metros, mas pelos cúbitos antigos. Eis as máquinas aritméticas, triunfo
fictício do quantitativo, na verdade promessa das qualidades ocultas dos
números, retorno à origem do Notarikon dos rabinos em fuga pelas landes da
Europa. Astronomia, relógios, autómatos, gritos e sussurros a entreter-me em
meio àquelas novas revelações. Prestes estaria penetrando no cerne de uma
mensagem secreta em forma de Theatrum racionalista, exploraria depois, entre a
hora de fechar e a meia-noite, aqueles objectos que à luz oblíqua do ocaso
assumiriam o seu verdadeiro vulto, figuras, e não instrumentos.
Em cima, atravessando as salas dos ofícios, da energia, da electricidade,
não encontrei vitrina em que pudesse esconder-me. Agora que pouco a pouco ia
descobrindo ou intuindo o sentido daquelas sequências, vi-me tomado de ânsia
por não haver tempo para encontrar um esconderijo de onde pudesse presenciar a
revelação nocturna da sua razão secreta. Movia-me agora como um homem
perseguido, pelo relógio e pelo avanço hórrido do número. A terra girava
inexorável, a hora chegava, em breve estariam à minha procura. Foi aí que,
atravessando a galeria de instrumentos eléctricos, cheguei à saleta dos vidros.
Que razão ilógica havia disposto para que houvesse, além dos aparelhos mais avançados
e custosos do engenho moderno, uma zona reservada a práticas conhecidas pelos
fenícios, milénios atrás? Era uma sala de colecções, onde se alternavam as
porcelanas chinesas e os vasos andróginos de Lalique, cerâmica, maiólicas,
faianças e muranos, e ao fundo, num escrínio enorme, em tamanho natural e a
três dimensões, um leão que esmaga uma serpente. A razão aparente daquela
presença era que o grupo figurava inteiramente realizado em pasta de vidro,
porém a sua razão emblemática devia ser bem outra... Procurava lembrar-me onde
já havia contemplado aquela imagem. Logo recordei. O Demiurgo, odioso produto
da Sophia, o primeiro arconte, Ildabaoth, responsável pelo mundo e sua radical
imperfeição, tinha a forma de uma serpente e um leão, e os seus olhos emitiam
luz de fogo. Era bem possível que o Conservatoire inteiro fosse uma imagem do
processo infame pelo qual, da plenitude do princípio primitivo, o Pêndulo, e do
fulgor do Pleroma, de éon em éon, o Ogdóade se desprende e alcança o reino
cósmico, onde reina o Mal. Mas agora aquela serpente, e aquele leão, estavam-me
dizendo que minha viagem iniciática, pobre de mim, à rebours, havia então
terminado, e dentro em pouco eu iria rever o mundo, não como devesse ser, mas
como de facto é. Com efeito, notei que no ângulo direito, contra uma janela,
estava a guarita do Periscópio». In Umberto Eco, O Pêndulo de
Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea (Difel), 2008, ISBN
978-846-125-726-3.
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT