jdact
«A cena erótica exige outra sublimidade. Começa a pedir exame,
observação, como se fosse um capítulo da fisiologia, e sê-1o-á com Rémy de
Gourmont. Eça instala-se nesse campo desertado pela ilusão lírica ou épica, as
de Camilo ou Hugo, e confronta-se com Eros, menos como enigma do que como
tentação, mesmo se o enigma permanece e acaba por manifestar, ao menos, uma das
suas faces. Ou, em todo o caso, o seu acicate, a mesma Morte.
Não foi apenas esta nova percepção do lugar de Eros, do seu triunfo,
agora universal na sua liberdade, que converteram Eça no ficcionista ímpar do
Eros moderno. Foi a prodigiosa semantização de todos os conteúdos da vida como
afectados pela presença omnipresente da pulsão erótica. E, sobretudo, a
perspicácia, a força, a minúcia, o fascínio, até à obsessão, com que “dá a ver”
o que por tão sabido e ocultado, não era objectivo de uma tal “epopeia”
erótica. Do “Crime do Padre Amaro” aos “Maias” desfilam, na óptica clássica do
jogo amoroso entre homem e mulher, todos os casos de conflito entre as
exigências de Eros e os obstáculos que a ética cristã opõe, reforçados pelo
código social, à manifestação do Desejo sem regras, nem sanções. Ao menos, na
aparência. E, para que a demonstração, em Eça há sempre este ‘parti pris’, seja
mais pertinente, o autor de “Os Maias” instala-se, à partida, numa espécie de “huis
clos” erótico que exclui a aventura, o drama ou a tragédia de que o amor pode
ser o centro, quer dizer, das situações banais, abertas, de conteúdo imprevisto
mais comum como é de tradição na novelística europeia a partir do século XVIII.
“Tudo se passa em família”, ou num estreito círculo de convivência sobre si
mesmo centrada. A ficção queirosiana é uma ficção anunciada. O quadro das
aventuras de Eros que conhecemos é perfeitamente condicionado. Além da
fatalidade inerente à pulsão desejante, Eça cria, constrói, propõe o quadro onde
essa pulsão, “a priori”, possa ser exasperada, facilitada sob a forma de
transgressão, segundo o código profano.
Não há histórias de “amores” tradicionais, ‘fait divers’ todos, como em
Camilo, onde o destino tem a sua parte. São, como na “tragédia grega” ou
raciniana ou shakespeariana, “histórias de família”.
Mesmo o “Crime do Padre Amaro” é uma, ou assim se vive. Claro que Amaro
e Amélia não são irmãos nem primos, mas simbolicamente são a configuração
humana mítica por excelência da nossa cultura: “Adão e Eva”. Felizmente, nesta
fase, só discretamente comparece o pendor alegórico, característico da sua
ficção. Mas o drama erótico de que ambos são os actores, idealmente irmãos pela
situação social e educação provincial, tem-nos a eles como Adão e Eva já expulsos
do Paraíso pelo tabu religioso que os devia separar, o do tentador e,
naturalmente, Deus. Um Deus que assiste, digamos assim, impassível, à tragédia,
mas que a condiciona, embora fora desse trio. O trio do Homem, a Mulher e o
Diabo é o trio de todas as ficções amorosas do Ocidente. Uma história de amor
são sempre “três pessoas”, mesmo que não exista a terceira. A terceira figura é
a que está desenhada em côncavo, a figura do Diabo, personagem central da
mitologia queirosiana.
Claro está, na ficção queirosiana a Mulher ocupa o lugar de fascínio e
da vítima. Em sentido próprio é Amaro o tentador, mas é também, muito
tradicionalmente, o tentado. Dá-se por entendido que é a Mulher o problema do
Homem. Mais a mais, numa altura em que o modo de ser e o estatuto “feminino” é
de eminentemente passivo. Ao contrário de Flaubert, onde a personagem feminina
escolhe o seu destino. Mas muito realisticamente, conforme à nossa realidade
portuguesa, Eça coibiu-se de chamar “Luísa” ao seu segundo grande romance». In
Eduardo Lourenço, As Saiasde Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006,
ISBN 989-616-151-8.
Cortesia de Gradiva/JDACT