terça-feira, 15 de maio de 2012

A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho. Carolina Michaelis de Vasconcelos. «A saudade e o “morrer de amor”, outra face do mesmo prisma de terna afectividade e da mesma resignação apaixonada, são realmente as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome»


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«Há quatro vozes peninsulares, de origem neo-latina todas elas, que são sinónimas de saudade. E todas elas foram já citadas por críticos nacionais e estrangeiros. Certo é apenas que não correspondem plenamente ao termo português. Certo, sobretudo, que não têm nem de longe, na economia dos respectivos idiomas-irmãos, a importância e frequência da saudade na língua portuguesa; nem tão pouco o “quid”, o não-sei-quê, de misterioso que lhe adere.
Isso vale tanto do castelhano “soledad soledades”, do mesmo modelo etimológico, como do asturiano “senhardade”, de “singularitate; vale tanto do vulgarismo galiziano “morrinha”, como do catalão “anyoransa anyorament”, usado amiúde por Ausias March, esse Petrarca catalão, nos seus sentidíssimos “Cants damor e Cants de Mort”, e usado hoje na própria Castela.
Plena concordância há, porém, entre “Saudade” e a “Sehnsuchr” dos alemães, tão penetrantemente exteriorizada na figura comovedora de Mignon, a expatriada, a “heimatlose”, e nas belas canções de Goethe que principiam

Conheces o país onde o limão floresce?
Só quem conhece a saudade sabe quanto eu vou sofrendo.

Em ambas elas vibra maviosamente a mágoa complexa da saudade:
  • a lembrança de se haver gozado em tempos passados, que não voltam mais;
  • a pena de não gozar no presente, ou de só gozar na lembrança;
  • e o desejo e a esperança de no futuro tornar ao estado antigo de felicidade.
Mas em regra a Sehnsucht alemã tem carácter metafísico. Aspira a estados e a regiões ideais, sobrehumanas: ao “Além”. Apesar dessas conformidades não nego de maneira alguma que o doloroso e doentio achar-menos daquilo que amamos, pessoa ou coisa, provocado pelo “allontanamento” quer corporal quer espiritual, o “ricordarsi del tempo felice nella miséria” fosse mais frequente do que alhures, na terra portuguesa, e nos séculos dos Descobrimentos e das Conquistas longínquas na África, Ásia, América. Nem nego que a Saudade seja traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas, muito mais do que a “Sehnsucht” é característica da alma germânica. Reflectida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou hoje em dia, do imperativo energético da actividade ponderada, essa tem muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios.
A saudade e o “morrer de amor”, outra face do mesmo prisma de terna afectividade e da mesma resignação apaixonada, são realmente as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome. Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e os livros que estilisticamente derivam dele, como a “Consolação de Israel” de Samuel Usque, e as “Saudades da Terra” de Gaspar Frutuoso. Perfumam as “Rimas” de Camões e os episódios e as prosopopeias dos “Lusíadas”. Perfumam as “Cartas da Religiosa Portuguesa”; e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de “Frei Luís de Sousa”. Não faltam no cancioneiro do povo; nem já, faltavam, na sua fase arcaica, nos reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até os dias de Pedro e Inês.
Logo no alvorecer da poesia, ainda antes de 1200, surgem naturalmente lindos lamentos de amor e de ausência. Encontro-os naquela singela composição, em que o robusto rei Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: “cuidado e desejo”. Ingénua bailada, escrita para a graciosa Ribeirinha que o enfeitiçara com o condão e as artes mágicas do eterno feminino, conforme eu tive a ventura de revelar os bons Portugueses.

Ai eu, coitada! – como vivo
en gran cuidado - por meu amigo
que ei alongado! - muito me tarda
o meu amigo - Guarda!
Ai eu, coitada! - como vivo
en gran desejo – por meu amigo
que tarda, e non vejo! - muito me tarda
o meu amigo - na Guarda!

Um “ai”, anteposto à última frase de cada estrofe aumentaria a força da sugestão, segundo o meu ouvido. Mas o antigo trovador não o entendeu assim; e a música talvez entoasse melodiosamente esse “ai” não pronunciado». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade minha – quanto te veria?”, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.


Cortesia de Guimarães Editores/JDACT