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A Escrita da História
«Comunicar é, pois, a última fase da elaboração do texto histórico.
Falo e penso em escrita, mais do que em comunicação oral, mas para o contexto
muito amplo em que me situo, pouco importa a distinção. O fundamental é que a
mediação da palavra pronunciada, tornada exterior ao sujeito, se deve
considerar como que a pedra de toque da História. Quero com isto dizer que a
emoção causada pela contemplação do agir humano de outrora, da qual brota a
representação mental ou palavra interior, não passa de impressão vaga, ilusória,
e por isso mesmo estéril, se não florescer em escrita ou discurso.
Quero dizer, ainda, que a revelação da ordem cósmica apreendida na sua
observação, permanece engano se não se transforma em palavra externa. O que
significa, finalmente, por mais paradoxal que isto seja, que a ordem cósmica só
existe, ou pelo menos só se torna fecunda, quando é “pronunciada”. A palavra, o
texto, é que realmente a “fundam”, é que realmente a instauram. Como intuíram
há muitos séculos os filósofos e dizem de muitas maneiras os poetas (os
grandes), a palavra recria o mundo, tira-o do caos para o cosmos. A palavra humana
tem essa força criadora porque não é senão a encarnação do ‘Logos’ eterno no
tempo.
A história escrita resulta, obviamente, da intensidade da descoberta.
Por isso insisto tanto no carácter triplamente emotivo e estético da experiência
que tento descrever. É-o desde a observação atenta e apaixonada do real até à
produção emocionada de um texto, passando pela intensidade do cântico interior.
Daí que o historiador, se o é de verdade, não possa deixar de escrever, como o
poeta não pode deixar de compor os seus poemas, como o músico de criar as suas
sinfonias, como o namorado de falar da sua amada, como o místico de rezar e
cantar. E, ao comparar a história escrita com estas diversas espécies de textos
nascidos de uma experiência com um denominador comum, a percepção poética, pretendo,
evidentemente, insistir mais no carácter artístico do texto histórico, do que
no seu teor científico. Mas uma coisa não exclui a outra, ao falar da
representação mental. O que importa, aqui, é sublinhar que o texto histórico
terá de ser rigoroso, objectivo, bem fundamentado, mas também claro,
comunicativo, sugestivo, ou mesmo, no limite, fundador de harmonia, construtor
de evidências que seriam como que a expressão do reconhecimento da ordem
cósmica, ou, mais ainda, da potência criadora do ‘Logos’. Por isso digo que a
escrita da história é do domínio da arte, quer ela se considere como uma “techné”,
no sentido de um saber afeiçoar a matéria, quer se considere como uma espécie
de dom carismático.
Falo, aqui, e sempre, de limites. Na prática, temos, é claro, de
reconhecer que existem graus. Há o texto ingénuo e rude, o livro maçador mas
útil, pela selecção de materiais, o compêndio primário, para consumo escolar, a
ordenação esquemática e simplista que só classifica quantitativamente; mas há
também a obra genial, verdadeiramente reveladora do que ninguém ainda tinha descoberto,
ou o texto fundador de uma nova era historiográfica, quer dizer de uma nova
etapa na consciência que a Humanidade adquire da sua própria caminhada no
tempo. Entre estes diversos géneros, os graus são inúmeros, e é claro, não
interessa a nenhum aprendiz de historiador (que somos todos os que escrevemos
história), tentar saber que grau de genialidade alcançou, mas apenas responder
com paixão ao impulso interior. Porque, uma vez produzido o texto, já não lhe
pertence. Passa a fazer parte do património da Humanidade. Dele brotam então
sementes e frutos que o autor não suspeitava e que não pode administrar». In
José Mattoso, A Escrita da História (teoria e métodos), Imprensa Universitária,
editorial Estampa, Lisboa, 1988.
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