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Carta-prefácio
«Que o Cardeal Infante era sincero mostra-o seu procedimento posterior,
durante trinta anos. Tanto assim que o único dano provindo a Damião de Goes das
denúncias de Simão Rodrigues parecia ter sido a perda do preceptorado do príncipe
João. Nomeado foi António Pinheiro, futuro bispo de Miranda, homem palaciano,
de boa eloquência e falas amáveis, erudito e sabendo ladear complicações, a ponto
de, sendo cronista-mor do Reino, ter evitado escrever as crónicas de Manuel I e
de João II a despeito do empenho nisso posto pela Rainha, pelo Cardeal e pelo
próprio rei Sebastião.
As relações dele com Damião de Goes não parecem ter sido ostensivamente
más, mas António Baião acentua a diversidade de temperamento entre os dois, e
as dificuldades postas na Torre do Tombo ao fornecimento de documentos para o bispo
de Miranda se desempenhar do encargo de cronista de João III, e daí o deduzir
também a «medida, quase cheia com o capítulo da crónica, transbordou com os
queixumes, com as intrigas do bispo Pinheiro, persona grata à Inquisição (maldita)
e, provavelmente, sabedora de muitos dos seus segredos». Goes também contara
que o bispo se escusara da Crónica de Manuel I ‘ou por ser mais inclinado a
outros estudos ou por ter o trabalho por grande’.
Não tomara o cardeal inquisidor em conta as denúncias contra Damião de
Goes. Tanto assim que o solicitou a realizar a Crónica de seu pai, em 1558. O
cronista trabalhou intensamente nela e aprontava-a em 1566, levantando ventos.
O trabalho envelheceu-o e já Auguste Castam, quando, em 1565, veio a Portugal
com o conde Charles de Mansfelt, por motivo do casamento de Alexandre Farnesio
com a Infanta D. Maria, nota na sua memória: ‘il se faict fort vieulx’!
Junto do Cardeal Infante, também regente do Reino, Damião de Goes
continuava a ter o mesmo crédito; e até depois de publicada a crónica pareceu
que Sua Alteza fora superior às intrigas, aos clamores e, mais ainda, às
susceptibilidades pessoais, não levando sequer em conta o não ter sido enaltecida
bastante sua pessoa. Com efeito, na carta, já citada, da Rainha reduzindo a
metade o empréstimo pedido pelo cronista, se diz também:
- ‘Vi os capítulos que me enviastes assi o que fala no cardeal infante meu tio, como o que toca às coisas d'El Rei Dom Fernando. No do cardeal mandei emendar o que vereis, e no d'El-Rei Dom Fernando mudar o que também vereis pelo caderno que com esta vai, conforme ao qual o fareis lançar em seu lugar’.
Essas emendas e acrescentos relativos ao Infante Henrique, no capítulo
27, podem ver-se em “As Variantes das Crónicas” e vão desde o estilo tornado
mais palaciano, até a forma como fala do grande nevão caído sobre Lisboa nesse
dia 31 de Janeiro, o do seu nascimento, à sua actividade de Inquisidor
(maldito). Foi esse capítulo engrossado para mais do dobro.
Acentuemos também que emendas houve concertadas e comunicadas ‘com o
bispo’. Provavelmente António Pinheiro, que não se arriscara a escrever as
crónicas, mas tomava parte nas mutilações e acrescentos, recolhendo aplausos e
agrados! A sobriedade de Goes não agradava.
Sabido como é ser Henrique Cardeal muito sensível à lisonja, a sua estima
por Damião de Goes deverá ter sofrido grande abalo a despeito das mercês de que
o acumulou ao ser publicada a obra, mas antes de lida e criticada, nesse mesmo
ano de 1566: em 28 de Janeiro recebia a tença de 20 reais e o hábito de Cristo;
em Junho recebia o foro que se pagava à Fazenda Real das terras do Magalhães,
perto de Beja, mercê que se prolongaria por via de sua mulher Joana de Hargen.
Depois, por morte de ambos, passaria a sua filha Isabel de Goes. Em Novembro, a
18, o lugar de guarda-mor da Torre do Tombo, em sobrevivência, a Ambrósio de
Goes, por morte de seu pai A 6 de Fevereiro recebera a mercê de poder mandar
vir do Oriente mercadorias defesas de forma a tirar para si o lucro de dois mil
cruzados, nesse ano de 1566». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na
Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT