In Memoriam de MLAC
O silêncio dos primórdios. O facto e a lenda.
O silêncio dos primórdios. O facto e a lenda.
«Até hoje, com base em documentos, em relação à origem da devoção ao “Senhor
Jesus dos Aflitos”, não foi possível recuar além do período de l713 - 1720. Por
estes anos, é-nos atestado o “facto”. O que eventualmente esteve para trás
permanece envolvido no “silêncio”. Com a luz do “Documento 21”, tentei penetrar
neste “silêncio”, que tem escondido o “facto”, nas origens. Até aos nossos
dias, o “silêncio” sobre o “facto inicial” era quebrado apenas pelas “lendas”,
que recolhi junto de pessoas ligadas ao lugar, porque os documentos do arquivo
da confraria, aos quais agora dou vida, permaneceram adormecidos e esquecidos
noutro silêncio e sono prolongados.
A lenda deve ser compreendida como um “género literário” próprio para
transmitir ou explicar dados realmente históricos, cujos traços exactos, na sua
origem, ficaram sepultados na obscuridade da noite e da distância no tempo. Não
se trata de ‘patranhas’ inventadas, mas de “história” bem real, cujos contornos
escaparam a quem os vive agora e que quem a viu nascer nunca pensou em legar
aos vindouros senão pela própria vivência. É o facto que explica a lenda e não
a lenda que cria o facto.
Só o facto, fosse ele qual fosse, embora envolvido no silêncio, explicava
as manifestações indesmentíveis de fé e de religiosidade popular, em que
gerações e gerações de peregrinos participavam. E estas, à medida que o cordão
umbilical mais se estendia, distanciando-se da origem, por necessidade natural,
apresentaram explicações plausíveis e compreensíveis de todos, impregnadas de
roupagem valiosa, mas não histórica. Para tais gerações, o importante não era a
roupagem, mas sim o “facto” que, ano após ano, tinham diante dos seus olhos. É
isto a lenda.
O conteúdo nuclear da lenda deve ser tido em conta; é assunto que “deve
ser lido”». In Bonifácio Bernardo, Senhor Jesus dos Aflitos, Origens 1713 –
1845, Edições Colibri, 2000, ISBN 972-772-145-1.