jdact
«-Voltaste a interromper-me, Luís. E, crede-me, não é por prazer que
me demoro com estes detalhes. Tudo, até ao mínimo pormenor, vos interessa. Se
não souberdes como Cresceu a menina, pouco entendereis das suas atribulações da
idade adulta. Rogo que não volteis a intervir. Tanta interrupção só faz que eu perca
o fio à meada e volte o melhor do meu pensamento para o céu.
- Desculpai-me de novo, nobre ancião, e aceitai a minha promessa de
silêncio até que a narrativa chegue ao fim.
- Subscrevo tal propósito, acrescentou o sorridente Lope.
- Desde este momento, ficámos mudos. Intrigados nos mantereis e
desejosos de conhecer o desenlace dessa que, presumo, será uma bela história de
amor.
A noite caíra sobre Madrid. A grande sala da taberna do Alonso estava
vazia e só ficara aceso o archote que iluminava os três interlocutores. Num
canto afastado, Alonso e a moça que servia às mesas dormitavam com o calor do
braseiro que ia morrendo na chaminé. O silêncio e a semiobscuridade criavam um
ambiente propício às confidências. Baixando a voz, o português continuou a sua
história. E tantos e tão vivazes pormenores ia introduzindo na narração que, como
se de um milagre se tratasse, Vélez e Lope criam que os sucessos relatados
estavam a acontecer ante os seus olhos.
Por aquele ano de 1330, andava D. Constança em silêncios e melancolias.
O motivo era apenas um: a forma como estava a ser tratada pelo jovem rei de
Castela, Afonso XI, a quem, em 1325, quando tinha apenas seis anos de idade,
fora prometida em casamento. As divergências surgidas entre o pai de D.
Constança e o Rei a propósito da posse do selo real, levaram o futuro marido a
obrigá-la a recolher ao castelo de Toro e, quatro anos mais tarde, em 1329, sem
aguardar que chegasse à idade núbil para consumar o matrimónio, a devolvê-la a
Peñafiel, solar da família, considerando o compromisso sem efeito.
Não só pela palavra não cumprida como também pelo afastamento da
família, D. Constança regressou do cativeiro de olhar sombrio e a alma perdida
de amargura. O pai, que na altura tinha contraído segundas núpcias com D.
Blanca de la Cerda, perdia as noites a pensar na forma como poderia devolver a
alegria à filha. Foi então que se recordou da sobrinha galega e, como eram de idades e
condição semelhantes, considerou a sua companhia como o remédio mais adequado
para devolver a Constança a alegria perdida.
O trato convinha a Pedro Fernández de Castro, e Inês, com apenas dez
anos de idade, teve de abandonar as matas de carvalhos e os campos férteis de A
Limia para partir para as áridas terras castelhanas. Só a acompanharam a ama,
um destacamento exíguo de soldados para lhe garantir a segurança e alguns dos
seus pertences mais queridos. Entre prantos e temores, despediu-se da família e
da paisagem. Depois de arrancar do pai e dos irmãos a promessa de próximas
visitas, começou a viagem.
Durante os primeiros dias de viagem distraiu-se com o fluir dos regatos
e com a densidade dos bosques que, de tão escuros, acreditou serem feudo de
mistérios e de lendas. Porém, atravessadas as montanhas de Leão, ao verde dos
pastos e à sombra acinzentada de carvalhos e castanheiros sucedeu-se uma imensa
planície que parecia desconhecer o mistério. Inês sentiu-se pequena ante a
amplitude do horizonte e do azul do céu que, de tão intenso, parecia querer esmagá-la.
Se Castela era aquilo, sentia-se desolada. Aquele ia ser o seu lar a
partir de então: uma planura sem fim, o ocre da paisagem e o ar seco e fino,
que lhe picava a pele como se fosse composto por milhares de alfinetes. O
caminho que percorriam perdia-se no horizonte, tão recto que parecia ter sido
traçado pata obrigá-la a cumprir o seu destino. De nada servia virar a cabeça
para tentar medir a distância que a separava do pai e dos irmãos. As montanhas
que durante várias léguas lhe tinham servido de referência haviam-se perdido na
distância e agora só se avistavam algumas aves no céu, aves que, como ela,
cruzavam a campina, sem que soubessem a sua procedência nem o seu destino». In
Inês de Castro, María Pilar Queralt de Hierro, Editorial Presença, Lisboa,
2006, ISBN 978-972-23-3081-7.
Cortesia de Editorial Presença/JDACT