(1694-1778)
Paris
Cortesia de cafehistoria
«O Frango: Oh, meu Deus,
minha galinha, estás tão triste; que tens?
A Franga: Meu caro amigo,
pergunta-me, antes, pelo que não tenho. Uma maldita criada tomou-me entre os
joelhos, mergulhou-me uma longa agulha no cu, agarrou a minha matriz, enrolou-a
à volta da agulha, arrancou-a e deu-a de comer ao gato. E eis-me incapaz de
receber os favores do cantor lírico do dia e de pôr ovos.
O Frango: Ai!, minha querida,
eu perdi mais do que tu; fizeram-me uma operação duplamente cruel: nem tu nem
eu voltaremos a ter consolação neste mundo; fizeram-vos franga e a mim frango. A
única ideia que serenou o meu estado deplorável foi a que ouvi, há alguns dias,
junto à minha capoeira, debatida entre dois abades italianos a quem tinha sido
perpetrado o mesmo ultraje para que pudessem cantar diante do papa com uma voz
mais cristalina. Diziam que os homens haviam começado por circuncidar os seus
semelhantes e que tinham acabado por os castrar: amaldiçoavam o destino e o
género humano.
A Franga; Como? É, então,
para que tenhamos uma voz mais clara que somos privados da mais bela parte de
nós?
O Frango: Infelizmente, minha
pobre franga, é para nos engordar e tornar mais delicada a nossa carne.
A Franga: Pois bem! Quando
estivermos gordos, ficá-lo-ão eles ainda mais?
O Frango: Sim, porque
pretendem comer-nos.
A Franga; Comer-nos! Ah, os
monstros!
O Frango: É o seu costume;
encarceram-nos durante alguns dias, fazem-nos engolir uma farelada de que têm o
segredo, rebentam-nos os olhos para que não nos possamos distrair; por fim, chegado
o dia da festa, arrancam-nos as penas, cortam-nos a goela e assam-nos. Somos
levados diante deles numa ampla travessa de prata; cada um comenta de nós
aquilo que pensa: um diz que sabemos a avelã, outro gaba a nossa suculenta carne;
exaltam as nossas coxas, os nossos braços, a nossa rabadilha. Faz-se uma oração
fúnebre e aí está a nossa história neste baixo mundo dada por terminada para
sempre.
A Franga: Que horrendos
patifes! Estou prestes a desfalecer. Como? Furarem-me os olhos! Cortarem-me o
pescoço! Assarem-me e comerem-me! Esses celerados não têm um pingo de remorsos?
O Frango: Não, minha amiga;
os dois abades de que te falei diziam que os homens nunca têm remorsos das
coisas que têm o hábito de fazer.
A Franga: A detestável corja!
Aposto que quando nos devoram ainda se põem a rir e a contar ditos anedóticos,
como se nada fosse.
O Frango: Adivinhaste; mas
fica a saber, se te serve de consolação, que essas bestas, bípedes como nós, e
que estão verdadeiramente abaixo de nós visto que não têm penas, fizeram muito
frequentemente o mesmo com os seus semelhantes. Ouvi dizer aos meus dois abades
que nenhum imperador cristão ou grego se coibiu de furar os dois olhos aos
primos e aos irmãos; que, mesmo no país em que vivemos, um houve, chamado Débonnaire,
que fez arrancar os olhos ao seu sobrinho Bernard. Mas quanto a assar os da sua
espécie, nada foi mais comum entre os homens. Os dois abades diziam que mais de
vinte mil tinham sido assados por alimentarem certas opiniões, que seriam difíceis
de explicar para um frango e que não importam por aí além.
A Franga: Seria,
aparentemente, para os comer que os assavam.
O Frango: Não ouso
assegurá-lo, mas lembro-me bem de ter ouvido claramente que há muitos países,
entre os quais o dos judeus, onde os homens são algumas vezes comidos uns pelos
outros.
A Franga: É adequado a uma
espécie tão perversa que se devore a si mesma e seria justo que a terra fosse
purgada desta raça. Mas eu que sou pacífica, eu que nunca fiz mal, eu que dei mesmo
de comer a esses monstros ao dar-lhes os meus ovos, serei mutilada, cegada,
degolada e assada! Tratam-nos assim no resto do mundo?
O Frango: Os dois abades
dizem que não. Sustentam que num país chamado Índia, muito maior, mais belo,
mais fértil do que o nosso, os homens têm uma lei santa que desde há milhares
de séculos proíbe que nos comam; contavam que houve, inclusive, um homem, “Pitágoras”
de nome, que, tendo viajado nesse país de gente tão justa, trouxera para a
Europa essa lei humana, então seguida pelos seus discípulos. Aqueles bons curas
liam Porfirio, o “Pítagórico”, que escreveu um interessante livro contra os
espetos. Oh!, que grande homem! O divino homem que foi Porfirio! Com que sabedoria,
com que força, com que respeito afectuoso pela Divindade, provou que somos os
aliados e os pais dos homens; que Deus nos deu os mesmos órgãos, os mesmos
sentimentos, a mesma memória, o mesmo germe desconhecido do entendimento, que
se desenvolve em nós até ao ponto determinado pelas leis eternas e sem o qual
nem os homens nem nós podemos alguma vez viver! Com efeito, minha querida
franga, não será uma afronta à Divindade dizer que temos sentidos para nada sentir
e cérebro para nada pensar? Esta imaginação digna, segundo diziam os abades, de
um louco chamado Descartes, não será o cúmulo do ridículo e o vão pretexto da
barbárie? Mesmo os maiores filósofos da Antiguidade nunca nos penduravam nos
espetos. Empenhavam-se a aprender a nossa linguagem e a descobrir as nossas
propriedades tão superiores às da espécie humana. Estávamos em segurança com
eles como na idade de ouro. Os sábios não matam os animais, disse Pitágoras; somente
os bárbaros e os padres os matam e comem. Este filósofo escreveu aquele
admirável livro para converter um dos seus discípulos, que se tinha feito
cristão por gulodice». In Voltaire, Diálogos do Frango e da Franga, Arbor
Littera, 2010, ISBN 978-989-8292-39-1.
Cortesia de Arbor Littera/JDACT