terça-feira, 22 de maio de 2012

Retratos da Vida de um Alcoólico. Mário Soares. «Não era caso para menos, pois eu estava metido em tudo o que fosse pancadaria. Mas para mim, era um título de glória. Sentia-me ufano do respeito que impunha aos outros. Um testemunho dramático que é, simultaneamente um alerta e uma mensagem de esperança»


Cortesia de teleios

Num dia sufocante, de intensíssimo calor,
Enecontrei, ao regressar da escola,
Um passarinho quase sem aida, caído na rua.
Levantei-o do chão perante olhares indiferentes,
Aninhei-o nas mãos em concha,
E trouxe-o para casa.

Meti-lhe, pela goela, gotas de água com a pipeta de
frasco de remédio,
Dirigi-lhe palavras carinhosas que ele pareceu entender,
E mal o achei melhor abri-lhe as mãos e dei-lhe a liberdade.

Todas me cumprimentaram pelo bondoso coração que
assim revelei.
Todas cumprimentaram a minha mãe pela boa educa-
ção que me soubera dar.
Todas as visitas me deram palmadinhas no rosto e fui
apontado, aos meninos maus das visitas como um
exemplo edificante que todos deveriam seguir.

Eu sorria-me porque me lembrava de ter ouvido contar
que um tio-avô materno, que não cheguei a conhecer,
também um dia encontrara um passarinho caído na
rua e fizera o mesmo que eu fiz.
António Gedeão, in  "Poemas Póstumos - Poema do tio-avô materno

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Entrada no poço...
«Tinha eu 19 anos quando fui chamado a cumprir serviço militar obrigatório em Angola. Até aí tinha sido um jovem normal, que estudava e trabalhava, com vontade de vencer na vida. Já se notavam sinais evidentes de rebeldia, que me levavam a praticar desportos violentos e que em nada beneficiaram o meu bom nome, nem o da minha família, por eu os pôr em prática fora dos recintos desportivos próprios para o seu desempenho. Tudo isto valeu-me a alcunha de ‘Mário Planta’ que ficou registada, pela negativa, na memória das pessoas que me conheciam. Não era caso para menos, pois eu estava metido em tudo o que fosse pancadaria. Mas para mim, era um título de glória. Sentia-me ufano do respeito que impunha aos outros. Não tinha medo de nada nem de ninguém e estava sempre disposto a partir para a luta, resolvendo todos os problemas pela violência.
Nesse tempo, jogava futebol nas camadas jovens do Beira-Mar. Até tinha jeito e podia ter-me projectado para uma grande carreira futebolística. Fui conhecendo pessoas que, tal como eu, eram, de certa forma, violentas e que, ao contrário de mim, já consumiam bebidas alcoólicas. Lá me fui aguentando sem entrar no campo do ‘alcoolismo’. Só que, no convívio com estas pessoas, a minha agressividade e violência foram aumentando. O meu interesse pelo futebol foi esmorecendo. Mesmo assim, não era consumidor abusivo de bebidas alcoólicas.
A nível escolar, os meus resultados também não eram bons. No meu percurso de estudante na EICA, até aos l8 anoso não consegui acabar o curso, o que levou os meus pais a porem--me a trabalhar na construção civil e a estudar, simultaneamente. Foi pior a emenda que o soneto. Uma vez na construção civil, enquanto trabalhador por conta do meu pai, comecei a adquirir musculação, que fez de mim uma pessoa bastante forte e me convenceu que era imbatível, que podia fazer frente a todos.
Deixei definitivamente os estudos.
Nessa altura, e porque já existiam pessoas na firma do meu pai que abusavam das bebidas alcoólicas, fui sendo arrastado, lentamente e sem me aperceber, para o caminho do alcoolismo. Sem me ter tornado alcoólico, admito que este contacto foi o trampolim para que começasse a gostar do consumo do álcool, deixando mesmo de me interessar pelas grandes oportunidades de me tornar um grande exemplo para a sociedade, tanto na área desportiva, como na da sociabilidade. Os meus pais fizeram um grande esforço nesse sentido mas, infelizmente, foi inglório, uma vez que me tinha tornado estupidamente violento e sem respeito por ninguém.
Chegaram os l8 anos e, porque me julgava preparado para enfrentar a vida, decidi oferecer-me, como voluntário, para o exército, cometendo uma vez mais o grande erro de não ouvir quem me queria bem e só se preocupava com o meu bem-estar.
Fui à inspecção. Fiquei apurado para o serviço militar. Fui incorporado no aproveitamento do Curso de Sargentos, em Leiria, no R.I. 7. Não cheguei a concluir este curso por não mostrar grande interesse por esta nova faceta. Durante a minha estada em Leiria e depois de prestar provas, fui escolhido para o Curso de Comandos, por ter ficado em primeiro lugar nas provas físicas e desportivas.
Aí, não deixou de prevalecer a minha inclinação para a prática dos desportos violentos, tendo tido a nota máxima na prova de boxe. Felizmente, e porque alguém gostava de mim, o meu irmão foi sem o meu conhecimento, pedir a um comandante militar, a minha exclusão das provas dos Comandos, por se tornar perigoso em termos futuros. Fui então colocado, como lº Cabo, no Regimento de Transmissões do Porto, de onde, depois de concluir a especialidade de radiotelegrafista, fui mobilizado para Angola.
Tinha então completado 19 anos. Ingressei num batalhão de cavalaria em formação, no R.C.3 - Estremoz. Foi a partir dessa altura que comecei uma nova vida, pela negativa». In Mário Soares, Retratos da Vida de um Alcoólico, Pé de Página Editores, 2004, ISBN 972-8459-93-9.

Continua
Cortesia de Pé de Página/JDACT