segunda-feira, 21 de maio de 2012

Antero ou a Noite Intacta. Eduardo Lourenço. «A esse título, Antero é o único intelectual comprometido com a acção que não transigiu com o comum espírito do seu tempo. Eça, tão fiel às mais delicadas e efémeras vibrações desse tempo, traduziu essa impressão ao notar na atitude de Antero, tanto física como moral…»



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Antero ou o socialismo como utopia
«Assim, independentemente do papel paralisante da sua doença e do facto de todos os movimentos de carácter socialista do século XX (digo bem, “todos...”) conterem uma componente utópica, Antero estava, pela sua configuração mental e pelo contexto cultural português, votado, mais do que ninguém, à tentação, mas também ao dever, da “utopia”. Todavia, ‘a utopia’ anteriana não tem nada a ver com esses projectos de sociedade ideal, euforizante, igualitária e libertária, à Fourier ou à Père Enfantin, modelos grandiosos, a meio caminho do sonho e da contra-sociedade. O utopismo de Antero de Quental é de essência “ética”: o socialismo toma a figura do futuro, é já o futuro que se aproxima, a nova Parusia, na medida em que exprime na ordem social a Justiça ‘irmã da Razão e do Amor’, uma Justiça que mesmo sob o manto histórico da injustiça e da opressão é a lei “imanente” da Evolução. O proletariado deve triunfar “porque tem razão”, exactamente como a Burguesia está já condenada pelas suas exacções, os seus abusos, o seu luxo e podridão moral. Pessimista, quando contempla o destino dos homens no espelho da Natureza, Antero torna-se ‘crente’ quase voluntarista ou fideísta quando pensa na subida da consciência, simultaneamente intelectual e moral, ao longo do calvário da História. Há em Antero, como em muitos portugueses da sua época (e depois), um padre que se ignora ou talvez nem isso.
O seu ‘utopismo’ socialista é, no fim de contas, um idealismo ético, singularmente puro e puritano, uma espécie de ‘pari’ de um novo género, destinado a conferir um sentido a uma História que de um ponto de vista científico e realista parece desprovido dele. Este voluntarismo aproxima Antero da atitude que designamos hoje como ‘esquerdista’, ‘gauchista’ e talvez não seja por acaso que nos arraiais do esquerdismo ocidental encontramos tantos homens oriundos do militantismo cristão. Em contraste com os seus companheiros de geração, Antero pode ser incluído anacronicamente nessa categoria, o que aliás explica a desconfiança e até a má vontade que mais tarde a ortodoxia marxista lhe manifestará, não apenas nos planos ideológico e político, como até no literário. Mas, se ’esquerdismo’ existe, é de uma natureza bem particular. O seu horror à política do tempo, a sua condenação sem apelo do formalismo parlamentar, aproximam-no, com efeito, do esquerdismo moderno. Porém, nunca Antero teria consentido investir o sentido da acção e da existência concretas dos homens no ‘político’ e no ‘ideológico’ concebidos como esferas capazes de englobar o todo da realidade humana.
O seu voluntarismo não abdica da referência ética, no sentido mais radical, e esta, por sua vez, só encontra o seu fundamento na referência metafísica e o seu cumprimento como ideal último naquela aspiração que ele mesmo designou de ‘santidade’. Que no final da sua vida a tenha concebido mais sob a forma budista que cristã nada retira à exigência que nela se encarna.
A esse título, Antero é o único intelectual comprometido com a acção que não transigiu com o comum espírito do seu tempo. Eça, tão fiel às mais delicadas e efémeras vibrações desse tempo, traduziu essa impressão ao notar na atitude de Antero, tanto física como moral, qualquer coisa de ‘fora de moda’, de antigo, se não antiquado. O seu amigo Oliveira Martins visionou-o vivendo no século XIII…». In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT