quarta-feira, 2 de maio de 2012

A Trança Feiticeira. Leituras. Henrique Senna Fernandes. «Não dava trela aos rapazes. Aos mais atrevidos, fazia-lhes frente com a língua, respondendo, taco a taco, aos piropos grosseiros. Quando isto não chegava, enfrentava-os com o varapau de transportar os baldes, pronta para a cacetada»


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In Memoriam de JLT

«Entre as aguadeiras que ‘batiam a água’ mais activamente, no poço de Cheok Chai Un, destacava-se A-Leng, na altura, de 22 anos saudáveis e desabrochantes de vida. Incansável, ia e vinha, em volta do poço, desde manhã cedo, carregando os baldes de água, transportando-os, um em cada ponta do varapau que punha ao ombro, equilibrando-se donairosa, o corpo retezado com o peso, as ancas movediças, de cinzelada curva sensual, rebolando no ‘tun-sám-fu’, apertado.
Para ela, não havia estações do ano. Sempre a trabalhar, no Inverno, cobria-se duma jaqueta de lá, o ‘tun-sám-fun’ de pano grosso que mal a defendia do frio, no Verão, usava-o de pano fino, meio-nu nos braços, marcado nas costas e nas axilas pelo suor. No conjunto das companheiras do ofício, era a mais alta e a mais esbelta. Por mais que enfaixasse pudicamente os seios, por baixo da cabaia, como era o costume da época, entre as classes humildes, o vago contorno excitava a imaginação, como promessa dum tesouro escondido. Os olhos, em acentuada amêndoa, terminados em bico, ligeiramente recurvados para cima, tornavam a fisionomia oval, de malares proeminentes, irresistivelmente atraente. Quando sorria, duas covinhas da face emprestavam-lhe um ar ladino.
Falava alto, com voz timbrada, tinha as maneiras bruscas duma profissão dura, ao ar livre, houvesse sol ou chuva, a maior parte das vezes, esplendia em boa disposição. Ria, mostrando os dentes regulares, muito brancos que esfregava com pau de alcaçuz, tagarelava incessantemente e dominava o grupo. Quando zangada, a sua voz estilhaçava-se, de lés a lés, em torno do poço, o rosto encandecido, as narinas inflando no nariz pequeno.
Não dava trela aos rapazes. Aos mais atrevidos, fazia-lhes frente com a língua, respondendo, taco a taco, aos piropos grosseiros. Quando isto não chegava, enfrentava-os com o varapau de transportar os baldes, pronta para a cacetada. Ganhara assim respeito, no seu meio, embora sozinha, sem outro membro de família para a defender. Tacitamente, ascendera à categoria de princesa das aguadeiras, já que a rainha era uma mulher avantajada, cerca de quarenta anos, que imperava no poço, a Abelha-Mestra de todo aquele mulherio, superintendendo como conselheiro, casamenteira, curandeiro e parteira.
A Abelha-Mestra tratava A-Leng como pupila. Considerava-a sua herdeira e passar-lhe-ia a posição e os ensinamentos, se não houvesse outros acontecimentos, a alterar o curso normal das coisas.
Quando a Abelha-Mestra se enfurecia, calava-se o poço inteiro, o casario em volta recolhia-se, a criançada irrequieta debandava espavorida. Só A-Leng se atrevia a chegar-se a ela, serena e convincente, enfrentando corajosamente o primeiro embate da sua cólera e acalmando-a, a pouco e pouco. Dado que era a única, sobre quem nunca ninguém vira fustigar aquela ira terrível, muita gente, para solicitar um favor à Abelha-Mestra, fazia-o por intermédio da pupila. Por consequência, a sua situação, no bairro e naquele pequeno mundo peculiar, gozava de prestígio assegurado.
A-Leng tinha a sua vaidade. Era a trança grossa dos seus cabelos que rolavam, uma vez soltos, até o fundo das costas. Tratava-a com extremo apuro, demorando-se na penteadeira favorita, em cujas mãos estoicamente sofria tormentos, sem murmúrio, dócil como a mais dócil das donzelas. Mas era exigente. Enquanto a cor negra das madeixas, embebidas em óleo de madeira, não alcançava o luzimento que desejava, enquanto houvesse um fio rebelde, fora do lugar, e os nós da trança não tivessem a grossura ideal, não descansava.
Sentada na berma da rua, rigidamente direita e composta, num banquinho muito incómodo, diante do pardieiro da penteadeira, não muito longe do poço, as mãos sobre os joelhos, as pernas encolhidas, gastava o tempo que fosse necessário para o penteado. De todas as cabeleiras que se submetiam aos cuidados da penteadeira, era esta a preferida, pelo espesso manto negro, pela voluptuosidade que sentiam as suas mãos quando esticavam os fios de cabelo, fortes e resistentes. Quando a penteava, a penteadeira sorria, contava histórias, atraindo um grupo de ouvintes que se acocoravam, em volta, como açafatas duma princesa». In Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-80-8.


Cortesia da Fundação Oriente/JDACT