quarta-feira, 23 de maio de 2012

O Músico Cego. Vladimir Korolenko. Leituras. «Os desordeiros garibaldinos retiraram o seu digno camarada do meio da peleja, internaram-no num hospital qualquer, e foi assim que, passados alguns anos, Maksim apareceu subitamente em casa da irmã e ficou»


Cortesia de wikipedia

«A família em que nasceu o rapazinho cego não era numerosa. Além da mãe, havia ainda o pai e o ‘tio Maksim’, como era tratado por todos os familiares e também por outras pessoas. O pai era igual a milhares de outros proprietários rurais do Sudoeste da Rússia: benévolo, talvez até bondoso, tratava bem os trabalhadores e adorava construir e reconstruir moinhos.
Este trabalho absorvia-lhe o tempo quase todo, pelo que a sua voz apenas era ouvida em casa a horas determinadas, que coincidiam com o pequeno-almoço, o almoço e outros acontecimentos do género. Nesses casos, pronunciava infalivelmente a mesma frase: ‘Estás boa, alminha?’ - sentando-se a seguir à mesa e não proferindo mais nada, a não ser que se lembrasse, de vez em quando, de dar notícias sobre os veios de carvalho e as rodas de engrenagem. É óbvio, então, que a sua existência pacífica e despretensiosa tinha muito pouca influência no temperamento do filho. Ora, o tio Maksim era um homem em tudo diferente. Uma dezena de anos antes dos acontecimentos que estamos a descrever, o tio Maksim tinha fama de brigão muito perigoso não só nas redondezas da sua propriedade, mas também na célebre feira de Kíev. Toda a gente se admirava: como era possível que numa família tão respeitável em todos os sentidos, a da senhora Popelska, Iatsenko em solteira, pudesse surgir aquele terrível mano? Ninguém sabia de que maneira lidar com ele e o que fazer para lhe agradar. Às amabilidades dos senhores, o homem respondia com impertinências, mas perdoava aos mujiques a insubordinação e a grosseria, às quais qualquer ‘szlachcic’, pequeno fidalgo polaco, dos mais pacatos teria respondido com um tabefe. Por fim e para grande alegria de toda a gente bem-intencionada, o tio Maksim revoltou-se, por qualquer razão, contra os austríacos e partiu para Itália onde se juntou a Garibaldi, brigão e renegado como ele, e que, como contavam os senhores fidalgos aterrorizados, se irmanou com o diabo e considerava abaixo de cão o próprio Papa de Roma. Não havia dúvida de que, desta maneira, Maksim levou irremediavelmente à perdição a sua inquieta alma herege, mas em compensação as feiras deixaram de decorrer com grandes escândalos e muitas das mãezinhas nobres pararam de se preocupar com o destino dos filhos.
Pelos vistos, os austríacos também estavam zangados com o tio Maksim. De tempos a tempos o ‘Correio’, jornal desde sempre preferido pelos senhores fidalgos, mencionava nos relatórios o seu nome entre os mais arrojados correligionários de Garibaldi, até que, um belo dia, ficaram a saber, por intermédio do dito jornal, que Maksim caíra juntamente com o seu cavalo no campo de batalha. Os enraivecidos austríacos que, provavelmente, estavam de dente afiado para o pernicioso homem de Volin (o derradeiro esteio de Garibaldi, na opinião dos conterrâneos de Maksim), espadeiraram-no, cortando-o que nem um repolho.
- Acabou mal - disseram os fidalgos e atribuíram o facto à protecção que São Pedro dava ao seu representante na Terra. Achavam que Maksim tinha morrido.
Contudo, viria a verificar-se que os sabres austríacos não conseguiram desarraigar de Maksim a teimosa alma, que se lhe manteve no corpo, diga-se que bastante estragado.
Os desordeiros garibaldinos retiraram o seu digno camarada do meio da peleja, internaram-no num hospital qualquer, e foi assim que, passados alguns anos, Maksim apareceu subitamente em casa da irmã e ficou.
Agora já não estava para duelos. Amputaram-lhe toda a perna direita, andava com muleta; a mão esquerda estava inutilizada e dava apenas para se apoiar, mais ou menos, no bastão. Em geral, estava mais sisudo, mais quieto, e apenas de vez em quando a sua língua afiada dava golpes tão certeiros como, em tempos, o seu sabre. Deixou de ir às feiras, raramente aparecia na sociedade e passava quase todo o tempo na sua biblioteca, lendo livros, ninguém sabia que livros eram, pressupunha-se que eram descaradamente hereges. Também escrevia qualquer coisa, mas como os seus escritos nunca eram publicados no ‘Correio’, ninguém os levava a sério». In Vladimir Korolenko, O Músico Cego, Arbor Litterae, 2010, ISBN 978-989-8292-30-8.

  Cortesia de Arbor Litterae/JDACT