Dierickbouts, 1462, fcg
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A 'agudeza' no estilo culto
«E Vieira não seria também um culto na sua produção orat6ría? Na esteira
de António Sérgio, que escreveu um fecundo ensaio sobre Vieira, é costume
ligar-se o estilo culto ou “cultismo” dos séculos XVII-XVIII aos jogos de
palavras, imagens e construções (o barroquismo verbal, segundo Sérgio), e
opor-se-lhe o “conceptismo”, ou seja, os jogos de conceitos (o barroquismo do
pensamento, segundo o mesmo Sérgio). Os nossos historiadores literários adoptam
esta divisão, cultismo/conceptismo, para o conhecimento a escrita barroca, mas
esta distinção, que não existia assim no século XVII e que se revela muitas vezes
inoperante, tem a sua origem mais na concepção cartesiana e idealista que A.
Sérgio tem das relações entre linguagem e pensamento, e que já se sentia nas
críticas feitas por Verney aos escritores de Seiscentos (existiriam as ideias,
o pensamento em-si, e depois as palavras, meros veículos sem substância
própria) do que numa análise rigorosa da escrita culta de então.
Os vícios que no cap. V da Sexagésima Vieira atribui ao ‘estilo culto’
são de carácter conceptual, evidentemente ligado a automatismos verbais: as
antíteses, por exemplo, são figuras semânticas, actualizam-se sempre nos mesmos
conjuntos vocabulares: noite/ dia, luz/ sombra, etc. Além do testemunho de
Vieira, basta folhearmos o tratado mais importante do conceptismo, “Agudeza y
Arte de Ingenio”, 1642, do jesuíta espanhol B. Gracián, para nos darmos conta
de que muito dos jogos conceptuais andavam ligados a paronomásias, simetrias
frásicas, metáforas, enigmas, ou seja, tudo aquilo a que se convencionou chamar
cultismo, e sobretudo à complexidade e obscuridade do estilo, tomadas como um valor.
Aliás, muitos dos exemplos que aí são citados como modelos aparecem
explicitamente atribuídos a poetas ou prosadores que Gracián qualifica de ‘cultos’.
Defendemos nós que a ‘agudeza’, fundamento do conceptismo e muito usada
pelos cultos, e que poderá definir-se como a busca de relações ou ‘proporções’
subtis entre dois ou mais termos, geralmente factos e ideias, seres e
conceitos, muitas vezes, nos sermões de Vieira quase sempre, ao serviço da
argumentação e persuasão, só se torna visível e crível quando na própria estrutura
frásica e vocabular as mesmas relações aparecem como que em espelho. Passa a
haver um isomorfismo, ou seja, à forma ou organização dos conceitos corresponde
a forma ou organização das palavras e das frases. A motivação ou relação que se
estabelece entre uma e outra é geralmente de analogia, de semelhança (ou da correlativa
dissemelhança, oposição). Se percorrermos os textos oratórios de Vieira
encontramos sempre este mesmo mecanismo a orientar, articular e sustentar todo
o desenvolvimento discursivo.
A linguagem não está lá para transportar as ideias; está lá para as
tornar visíveis, imitando-lhes a configuração, como um seu simulacro material.
Há portanto um vaivém permanente entre a 1ógica mental e a lógica que
preside à estruturação linguística. Esta última passa a ter uma espessura própria,
imediatamente visível na sua figuração:
- Gradações e reiterações,
- Simetrias e, antíteses,
- Paronímias e, sinonímias,
- Enumerações e, anáforas,
- E sobretudo a riqueza e densidade significativa da selecção lexical.
Todas estas ‘figuras’, toda esta matéria profética se vai espelhar, por
similitude, na forma dos conceitos. Defendia Gracián que as analogias entre
palavras faziam descobrir analogias entre as coisas. Torna-se assim impossível aderir
a qualquer tipo de distinção entre os jogos de palavras e os jogos de
conceitos, aplicada à escrita barroca portuguesa». In Margarida Vieira Mendes, Sermões do Padre António Vieira. Apres., crítica,
selec., notas e sugestões para análise literária de, 1978; Lisboa: Edit.
Comunicação, 1987, p. 3l-36, FCG, 2007.
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