terça-feira, 22 de maio de 2012

Portugal, a Terra e o Homem. Antologia de textos de escritores do século XX. David Mourão-Ferreira. «A Península Ibérica constitui um todo, dos mais diferenciados e caracterizados; chamaram-lhe já um mundo por si, um mundo de diversidades e de contrastes. Buscaremos num conjunto de tais contrastes, de contrastes de natureza geofísica…»



Cortesia de wikipedia

António Sérgio (1883-1969)
A ‘Ocidental Praia’ do Continente Europeu.
«Visto por um critério de geografia humana, ocorre-nos que Portugal se poderá definir como a ‘ocidental praia’ da Península Ibérica; digamos, até, que como a ‘ocidental Praia’ de toda a Europa, onde se entroncam os caminhos marítimos provenientes do Norte e do Mediterrâneo, e de onde o Europeu se encontrava mais perto das orlas marítimas dos demais continentes, isto é, das costas atlânticas das regiões africanas, das da Índia por ininterrupta comunicação oceânica, e daquilo que houvesse da outra banda do mar: e explica-se talvez pela proximidade de León, e pelos efeitos sociais que de aí resultavam, que o território habitado pela população galega se não ligasse politicamente ao dos Portugueses. Fantasiamos achar uma representação deste facto na descrição da batalha de Aljubarrota do canto quarto dos “Lusíadas”, quando se nos diz que ao sinal de ataque, lançado pelas trombetas do Pastor de Castela:

ouviu-o o monte Artabro; e Guadiana
a trás tornou as ondas, de medroso.

Do monte Artabro ao Guadiana. O monte Artabro, como se sabe, está no extremo noroeste de toda a Ibéria; e o verso que associa no nosso espírito a avançada sobranceira do cabo Ortegal e esse humilde contorno em que o Guadiana se perde, sugere-nos a ideia da extensão da ‘ocidental praia’ da Península Hispânica; sucedeu, porém, que ante a belicosa intimação do Planalto, do clangor arrogante dos senhores da terra, a parte nortenha da população da Praia não veio a manifestar pela independência política um distintivo carácter comercial-maritimo: e não é por isso naquele monte Artabro, mas no rio Minho, que a ‘pequena casa lusitana’ assentou o limite setentrional.
A Península Ibérica constitui um todo, dos mais diferenciados e caracterizados; chamaram-lhe já um mundo por si, um mundo de diversidades e de contrastes. Buscaremos num conjunto de tais contrastes, de contrastes de natureza geofísica, a verdadeira base de carácter geográfico para o facto da “independência” dos Portugueses?
Aqui, cumpre não confundir dois problemas diferentes, como fazem por vezes alguns autores, a saber: o problema da influência dos caracteres geofísicos no fenómeno da “independência” de um certo povo (e nos seus limites) e o problema do influxo dos caracteres geofísicos no regime económico e social desse povo; este segundo problema é distinto daquele: e ainda que Portugal fosse província da Espanha (ou estivesse distribuído por várias províncias da Espanha), as condições geofísicas do território haveriam de influir no viver do povo.
Limitando-nos pois ao primeiro caso, lembremos que era moda, há uma trintena de anos, rejeitar e atacar a opinião prudente do maior historiador do nosso pais, que afirmava que a existência da nação portuguesa não tem fundamento racial ou geográfico, mas sim casualidade exclusivamente política, sendo que as mais vigorosas das investidas eram da iniciativa dos antropólogos. Por nossa parte, não deixámos de reagir contra tais ataques, fugindo ao dogmatismo dessa nova dogmática: e com prazer, por isso mesmo, vimos recentemente alguns bons sabedores inclinarem-se também para a opinião de Herculano.
Resumamos aqui as razões que nos movem pelo que respeita à questão propriamente geográfica, deixando para mais tarde a dos Lusitanos, e a da possível continuidade entre nós e eles. (…)
Em primeiro lugar, a série de argumentos dos ilustres cientistas que assinalam um alicerce de unidade geofísica à independência política de Portugal,  coloca em oposição a um Portugal geográfico uma unidade geográfica a que chamam ‘Espanha’ e que a nós nos parece que não existe, pela separação e diversidade das regiões da Ibéria. Se não estamos em erro, na entidade ‘Espanha’, que a Portugal opõem, não há mais unidade que a que de feito haveria se Portugal se incluísse também nela. Tal ‘Espanha’, supomos nós, vem a ser um complexo de regiões diversas, tão diferentes umas das outras como são diferentes de Portugal, e com mais individualidade do que Portugal; e de duas, uma:
  • ou só consideramos os caracteres “mais gerais” que unificam o conjunto das regiões da ‘Espanha’, e Portugal, em tais circunstâncias, incluir-se-á também nessa unidade geográfica, e teremos a Ibéria;
  • ou alegamos caracteres já não tanto gerais, e neste caso as regiões da ‘Espanha’ cobrarão também fundamento geográfico para constituírem Estados independentes, no mesmo grau do que Portugal, e se os não constituem, é que não bastam essas feições menos gerais para explicar a independência de qualquer nação.
 A ‘Espanha’ que a Portugal comparam são os “países” da Ibéria menos Portugal, quer dizer: uma unidade “política”, e não “geográfica”; por isso, o modo de argumentar dos referidos cientistas afigura-se-nos por esse lado contraditório: porque pretendem assentar no factor “geográfico” a existência “política” de Portugal, ao passo que assentam no factor “político” a existência geográfica da sua ‘Espanha’, agregado de países geograficamente distintos, e nos quais a unidade é, portanto “política”, e não “geográfica”. Além disso, tem qualquer coisa de petição de princípio: porque tal ‘Espanha’ resulta só de se haver admitido, de maneira prévia, a independência geográfica de Portugal». In David Mourão-Ferreira, Portugal, a Terra e o Homem, Antologia de textos de escritores do Século XX, Fundação C. Gulbenkian, IN-CM, 1979.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT