(1818-1883)
Orel, império Russo
Cortesia de wikipedia
Aldeia de Ovétchi Vódí, 20 de Março de 18..
«O médico saiu daqui agora mesmo. Por fim consegui perceber alguma
coisa. Por mais astúcias que ele usasse, não conseguiu deixar de manifestar-se
por fim. Sim, vou morrer em breve, muito em breve. Os rios vão degelar e eu,
provavelmente, vou desaparecer com a última neve... para onde? Sabe Deus! Também
para o mar. Ora bem! Se tenho de morrer, que morra na Primavera. Mas não será
ridículo iniciar um diário talvez duas semanas antes da morte? Que mal faz? E o
que são catorze dias menos do que catorze anos, do que catorze séculos?
Diz-se que, diante da eternidade, tudo são bagatelas, sim; mas neste
caso a própria eternidade é uma bagatela. Parece-me que estou a cair na especulação:
isso é mau sinal, não estarei com medo?
É melhor que comece a contar alguma coisa. Lá fora está húmido,
ventoso, estou proibido de sair. Mas contar o quê? Um homem decente não fala
das suas doenças; escrever talvez uma novela, não é ocupação para mim; a
discussão de temas elevados não está ao meu alcance; as descrições da
existência que me rodeia, nem sequer me interessam; mas nada fazer é enfadonho;
para ler, tenho preguiça. Ah! Vou contar a mim próprio toda a minha vida.
Magnífica ideia! Diante da morte isso é decente e não ofende ninguém. Começo.
Nasci há trinta anos, filho de proprietários rurais bastante ricos. O
meu pai era um jogador apaixonado; a minha mãe era uma senhora de carácter... uma
senhora muito virtuosa. Mas não conheci nenhuma mulher a quem a virtude
proporcionasse menos satisfação. Oprimida sob o fardo das suas qualidades,
atormentava toda a gente, a começar por si própria. Durante os cinquenta anos
da sua vida nem uma única vez descansou, nunca cruzou os braços; andava sempre
agitada e azafamada como uma formiga, e sem qualquer proveito, o que não se
pode dizer das formigas. Um bichinho incansável consumia-a de dia e de noite.
Só uma vez a vi completamente calma: no primeiro dia depois da sua morte, na
urna. Ao olhar para ela pareceu-me na verdade que o seu rosto exprimia um
ligeiro assombro; os lábios entreabertos, as faces descaídas e os olhos
docilmente imóveis, pareciam tremular as palavras: ‘Que bom, uma pessoa não se
mexer’!
Sim, é bom, é bom livrar-se por fim da consciência aflitiva da vida, do
sentimento obsessivo e desconfortável da existência! Mas não é essa a questão. Cresci
mal e sem alegria. Os meus pais amavam-me; mas isso não me fazia sentir melhor.
O meu pai não tinha qualquer poder na sua própria casa e nenhuma importância
como homem, sem dúvida entregue a um vício vergonhoso e devastador; consciente
da sua degradação e sem forças para se livrar da sua paixão preferida,
procurava ao menos, com o seu ar constantemente terno e modesto, com a sua resignação
evasiva, merecer a indulgência da sua esposa exemplar. Na verdade minha
mãezinha suportava a sua infelicidade com aquela grande e magnífica paciência
em que há tanto de orgulhoso amor-próprio. Nunca censurava o meu pai por coisa
alguma, dava-lhe em silêncio o seu último dinheiro e pagava as dívidas dele; ele
enaltecia-a na sua presença e na sua ausência, mas não gostava de estar em casa
e fazia-me festas furtivamente, como se receasse infectar-me com a sua presença.
Mas as suas feições desfiguradas respiravam tanta bondade nesses momentos, o
riso febril dos seus lábios era substituído por um sorriso tão tocante, os seus
olhos castanhos cercados de tanta rugas finas brilhavam com tanto amor, que eu
encostava de modo involuntário a minha face à dele, húmida e tépida das
lágrimas. Eu limpava essas lágrimas com o meu lenço e elas voltavam a correr,
sem esforço, como a água de um copo demasiado cheio. Punha-me também a chorar e
ele consolava-me, passava-me a mão pelas costas, beijava-me na cara com os seus
lábios trémulos.
Ainda agora, pouco mais de vinte anos depois da sua morte, quando me
lembro do meu pobre pai sobem-me à garganta uns soluços silenciosos e o meu
coração bate, bate com tanto ardor e tanta mágoa, aflige-se com tão saudosa
pena como se ainda lhe restasse muito tempo para pulsar e houvesse muito de que
ter compaixão!
A minha mãe, pelo contrário, tratava-me sempre da mesma maneira, com
carinho mas também com frieza. Nos livros infantis encontram-se muitas vezes
mães assim, moralizadoras e justas. Ela amava-me, mas eu não a amava a ela. É
verdade!
Esquivava-me à minha virtuosa mãe e amava apaixonadamente o meu pai
vicioso. Mas por hoje chega. O início, já o temos, e quanto ao fim, seja qual
for, não temos que nos preocupar com ele. É assunto da minha doença». In Ivan
Turguéniev, Diário de um Homem Supérfluo, Arbor Litterae, 2010, ISBN 978-989-8292-44-5.
Cortesia de Arbor Litterae/JDACT