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«Noutros tempos, para ir
de Lisboa a Santarém, metia-se a gente em um barco ‘sério e sisudo’, que nos
esperava ao “cais das colunas, no vapor de Vila Nova” saía do cansado corredor no
triste desembarcadoiro de Vila Nova da Rainha, o mais feio pedaço de terra aluvial,
em que a gente ainda poisou os nossos pés, escarranchava-se sobre uma alimária qualquer,
ou encaixava-se dentro da carroça de um amigo, que providencialmente nos aparecia
ao desembarcar, apeávamo-nos sobre as areias do célebre pinhal da Azambuja, montávamos
uma “enfezada mulinha asneira, que tinha de ser o nosso transporte dali até Santarém,
subíamos, a bom trotar da mulinha uma empinada ladeira”, muito próxima da
povoação, e chegávamos enfim ao alto, apresentando-se-nos diante do nós a ‘majestosa
entrada da grande vila’; como aconteceu ao autor das “Viagens na Minha Terra”.
Ou então em Vila Nova da
Rainha saltávamos do vapor para uma «pobre gôndola atada a dois rocins lazarentos,
às albardas góticas, aos campinos selvagens, como uma coisa viva a uma coisa
morta, e representando um sincronismo impossível entre os dois termos: 1553 – 1853.
Dois cavalos éticos, a cujas selas rugosas e remendadas ia prender-se a corda que
a movia, choutavam ao longo da senda marginal de sirga, montados por dois campinos
em ‘desabilé’ ribatejano, e conduziam-nos até á ponte da Asseca. No cães montávamos,
por exemplo, um cavalo que um amigo tinha antecipadamente disposto para aí nos
esperar no dia da nossa chegada, e partíamos imediatamente para Santarém», que fica
perto, há maneira de A. Herculano, quando em 1854 visitou aquela muito antiga e
notável vila.
Hoje não é assim. Quem se
resolve a sair da capital destes reinos, para ver Santarém, poucos têm essa curiosidade,
chega à estação de Santa Apolónia, compra um bilhete para a de Santarém, mete-se
no comboio, e duas horas depois ouve dizer a um empregado da companhia real dos
caminhos de ferro portugueses: — «Santarém, dez minutos de demora!» Salta a gente
para a plataforma, pega na sua mala, e, ao sair da estação, encontra um veículo,
que nos leva inevitavelmente à porta da hospedaria da ‘Felicia’, se não recomendarmos
ao cocheiro, que nos conduza a outra parte.
É mais rápido, mais cómodo,
mas também é menos poético este passeio hoje em dia.
Não se nos dava de afirmar,
que se vivesse agora o autor da ‘Historia de S. Domingos’, não era capaz de
descrever ‘O sítio da vila de Santarém’, de forma que o seu estilo tivesse sabor
clássico.
«Depois das “Viagens na
Minha Terra”, Santarém é como um pomo vedado; pertence de propriedade ao autor daquele
espirituoso e poético livro»; diz A. Herculano. Mas Santarém já devia de ter sido
“pomo vedado depois da História de S. Domingos”; e Garrett, por ser filho de Eva,
pecou tocando no pomo.
Fez muito bem.
A Santarém de fr. Luiz
de Sousa, que diferença que fazia da que viu Garrett!
Por isso este fugiu dali
exclamando:
- «Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e disfarçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espirito».
Grande alma de poeta, que,
no meio da horrível devastação, teve a coragem de dizer a verdade a uma geração
de hipócritas.
Mas nem por isso Santarém
ficou pertencendo de propriedade ao autor das “Viagens na Minha Terra”. E visto
que para os ‘escritores de profissão’ é ela como um pomo vedado, nós que não somos
do número desses tais, descrevê-la-emos, como podermos e soubermos, e desculpe-nos
a veneranda memória do sábio redactor do ‘Panorama’.
O Tibre concorre para a
notícia da fundação de Roma, como o Tejo para a de Santarém. Aquele rio não submerge
Rómulo e o Tejo arroja à sua margem direita a cesta onde vinha “Abidis”.
E, fábula ou não, Rómulo
é amamentado por uma loba, “Abidis” por uma corça.
Se foram, ou não foram alimentados
com o ‘nevado sanguíneo alimento das tais’ alimárias, para me servir da frase do
padre Vasconcelos, autor da “Historia de Santarém Edificada”, pouco importa.
Heródoto tem o seu Cyro;
Tito-Lívio o seu Rómulo: e os nossos cronistas o seu “Abidis”.
O próprio fr. Luiz de
Sousa não considerou que poderiam ficar manchadas as páginas da sua brilhantíssima
“Historia de S. Domingos”, escrevendo:
- «com o de Escalabis foi ela (Santarém) conhecida muito antes que a conhecessem Romanos: e tanto atrás que não falta quem queira referir sua origem a um “Abydis” Rei vigésimo quarto dos que em Hespanha floresceram logo depois do dilúvio por sucessão continuada».
A poesia é necessária à historia,
e nos livre, que ela faltasse na historia da humanidade.
A história refere a verdade;
mas se a narrasse, nua e crua, era de uma aridez
insuportável.
Estas reflexões ocorreram-nos
a propósito do primeiro nome, que teve Santarém, “Scalabis”. Nome que o nosso Camões,
recordou quando disse, referindo-se a Santarém:
… o sempre ennobrecido
Scalabicastro, cujo campo
ameno
Tu claro Tejo, regas tão
sereno.
E já os muros a haviam intitulado
Calabicastro, por síncope de “Escalabis Castrum”, sendo ao mesmo tempo conhecida
e venerada dos católicos com o nome de Santarém, o qual como epitáfio lhe puseram,
para conservar a memória do sepulcro de Santa Iria (29)». In Zeferino Brandão, Monumentos e Lendas de Santarém, Lisboa, David
Corazzi Editor, 1883, Makew Parr Collection, Magellan and the Age of Disvovery,
presented to Brandeis University, 1961, Tipografia Horas Românticas, Rio de
Janeiro.
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