quinta-feira, 10 de maio de 2012

Monumentos e Lendas de Santarém. Zeferino Brandão. «Depois das “Viagens na Minha Terra”, Santarém é como um pomo vedado; pertence de propriedade ao autor daquele espirituoso e poético livro»; diz A. Herculano. Mas Santarém já devia de ter sido “pomo vedado depois da História de S. Domingos”; e Garrett, por ser filho de Eva, pecou tocando no pomo»



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«Noutros tempos, para ir de Lisboa a Santarém, metia-se a gente em um barco ‘sério e sisudo’, que nos esperava ao “cais das colunas, no vapor de Vila Nova” saía do cansado corredor no triste desembarcadoiro de Vila Nova da Rainha, o mais feio pedaço de terra aluvial, em que a gente ainda poisou os nossos pés, escarranchava-se sobre uma alimária qualquer, ou encaixava-se dentro da carroça de um amigo, que providencialmente nos aparecia ao desembarcar, apeávamo-nos sobre as areias do célebre pinhal da Azambuja, montávamos uma “enfezada mulinha asneira, que tinha de ser o nosso transporte dali até Santarém, subíamos, a bom trotar da mulinha uma empinada ladeira”, muito próxima da povoação, e chegávamos enfim ao alto, apresentando-se-nos diante do nós a ‘majestosa entrada da grande vila’; como aconteceu ao autor das “Viagens na Minha Terra”.
Ou então em Vila Nova da Rainha saltávamos do vapor para uma «pobre gôndola atada a dois rocins lazarentos, às albardas góticas, aos campinos selvagens, como uma coisa viva a uma coisa morta, e representando um sincronismo impossível entre os dois termos: 1553 – 1853. Dois cavalos éticos, a cujas selas rugosas e remendadas ia prender-se a corda que a movia, choutavam ao longo da senda marginal de sirga, montados por dois campinos em ‘desabilé’ ribatejano, e conduziam-nos até á ponte da Asseca. No cães montávamos, por exemplo, um cavalo que um amigo tinha antecipadamente disposto para aí nos esperar no dia da nossa chegada, e partíamos imediatamente para Santarém», que fica perto, há maneira de A. Herculano, quando em 1854 visitou aquela muito antiga e notável vila.
Hoje não é assim. Quem se resolve a sair da capital destes reinos, para ver Santarém, poucos têm essa curiosidade, chega à estação de Santa Apolónia, compra um bilhete para a de Santarém, mete-se no comboio, e duas horas depois ouve dizer a um empregado da companhia real dos caminhos de ferro portugueses: — «Santarém, dez minutos de demora!» Salta a gente para a plataforma, pega na sua mala, e, ao sair da estação, encontra um veículo, que nos leva inevitavelmente à porta da hospedaria da ‘Felicia’, se não recomendarmos ao cocheiro, que nos conduza a outra parte.
É mais rápido, mais cómodo, mas também é menos poético este passeio hoje em dia.
Não se nos dava de afirmar, que se vivesse agora o autor da ‘Historia de S. Domingos’, não era capaz de descrever ‘O sítio da vila de Santarém’, de forma que o seu estilo tivesse sabor clássico.
«Depois das “Viagens na Minha Terra”, Santarém é como um pomo vedado; pertence de propriedade ao autor daquele espirituoso e poético livro»; diz A. Herculano. Mas Santarém já devia de ter sido “pomo vedado depois da História de S. Domingos”; e Garrett, por ser filho de Eva, pecou tocando no pomo.
Fez muito bem.
A Santarém de fr. Luiz de Sousa, que diferença que fazia da que viu Garrett!
Por isso este fugiu dali exclamando:
  • «Em Portugal não há religião de nenhuma espécie. Até a sua falsa sombra, que é a hipocrisia desapareceu. Ficou o materialismo estúpido, alvar, ignorante, devasso e disfarçado, a fazer gala de sua hedionda nudez cínica no meio das ruínas profanadas de tudo o que elevava o espirito».
Grande alma de poeta, que, no meio da horrível devastação, teve a coragem de dizer a verdade a uma geração de hipócritas.
Mas nem por isso Santarém ficou pertencendo de propriedade ao autor das “Viagens na Minha Terra”. E visto que para os ‘escritores de profissão’ é ela como um pomo vedado, nós que não somos do número desses tais, descrevê-la-emos, como podermos e soubermos, e desculpe-nos a veneranda memória do sábio redactor do ‘Panorama’.
O Tibre concorre para a notícia da fundação de Roma, como o Tejo para a de Santarém. Aquele rio não submerge Rómulo e o Tejo arroja à sua margem direita a cesta onde vinha “Abidis”.
E, fábula ou não, Rómulo é amamentado por uma loba, “Abidis” por uma corça.
Se foram, ou não foram alimentados com o ‘nevado sanguíneo alimento das tais’ alimárias, para me servir da frase do padre Vasconcelos, autor da “Historia de Santarém Edificada”, pouco importa.
Heródoto tem o seu Cyro; Tito-Lívio o seu Rómulo: e os nossos cronistas o seu “Abidis”.
O próprio fr. Luiz de Sousa não considerou que poderiam ficar manchadas as páginas da sua brilhantíssima “Historia de S. Domingos”, escrevendo:
  • «com o de Escalabis foi ela (Santarém) conhecida muito antes que a conhecessem Romanos: e tanto atrás que não falta quem queira referir sua origem a um “Abydis” Rei vigésimo quarto dos que em Hespanha floresceram logo depois do dilúvio por sucessão continuada».
A poesia é necessária à historia, e nos livre, que ela faltasse na historia da humanidade.
A história refere a verdade; mas se a narrasse, nua e crua, era de uma aridez insuportável.
Estas reflexões ocorreram-nos a propósito do primeiro nome, que teve Santarém, “Scalabis”. Nome que o nosso Camões, recordou quando disse, referindo-se a Santarém:

… o sempre ennobrecido
Scalabicastro, cujo campo ameno
Tu claro Tejo, regas tão sereno.

E já os muros a haviam intitulado Calabicastro, por síncope de “Escalabis Castrum”, sendo ao mesmo tempo conhecida e venerada dos católicos com o nome de Santarém, o qual como epitáfio lhe puseram, para conservar a memória do sepulcro de Santa Iria (29)». In Zeferino Brandão, Monumentos e Lendas de Santarém, Lisboa, David Corazzi Editor, 1883, Makew Parr Collection, Magellan and the Age of Disvovery, presented to Brandeis University, 1961, Tipografia Horas Românticas, Rio de Janeiro.



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