Cortesia de wikipedia
Para Eduardo Lourenço e Helder Macedo
«Sou da primeira geração de portugueses da segunda metade do século XX
que cresceu em liberdade. A geração que fez o exame da antiga 4ª classe
entoando Uma gaivota voava, voava, clamando a sua infantil liberdade e
respeitando o tom revolucionário que então se respirava, sem mais Américo Tomás
ou Marcelo Caetano nas paredes da sala de aula. Cresci e passei a minha
adolescência a ouvir o som do rock português clamando que queria ver Portugal
na então CEE. Europa, “sonho futuro” anunciado desde 46, por Adolfo Casais
Monteiro, era agora o sonho futuro dos jovens dos anos 80, filhos daquela
geração que lutou ao longo dos anos 50 e 60 contra a ditadura, a falta de
liberdade, a mesmidão do país onde nada acontecia, como dizia Alexandre O’
Neill; a mesma geração que teve o azar histórico de participar na grande
tragédia da nossa contemporaneidade que foi a Guerra Colonial em África. Enfim
filhos de uma geração de portugueses que nunca regressou, atormentada pelos
fantasmas da guerra, eternamente se questionando sobre o que fazer a “este
preto que cairá para sempre, a cada segundo, de umbigo roto, no interior de mim…”,
como se evoca tragicamente na obra de António Lobo Antunes, uma das primeiras
vozes literárias dessa geração educada na Mocidade Portuguesa, destruída nos
“cus de Judas” africanos, que teve os filhos pela Rádio, sujou as mãos e a alma
no naufrágio final do império e que, regressava para filhos que não os
conheciam, para mulheres que já não os entendiam, para um país que tinha vivido
sem eles e que ainda hoje os estranha, assim insistindo para que a memória da
guerra só a eles pertença.
Assisti e
tenho memória dos regressos desses pais que só se conheciam na fotografia e que
de repente estavam em nossa casa, dormiam com a nossa mãe, falavam vagamente
connosco e hesitavam em exprimir o seu carinho. Depois do 25 de Abril houve
também o regresso de muita gente que eu não sabia que também tinha partido:
emigrantes chegados de países europeus, exilados regressando do estrangeiro e
retornados desembarcados de África. Portugal era para todos estes “regressados”
um país imaginado: idílica paz para os soldados cansados da guerra ou início da
“guerra seguinte”; realização de sonhos políticos para os exilados, porto
seguro para exorcização de todas as humilhações passadas nas terras de
emigração; metrópole imaginada e lugar de retorno obrigatório para os
retornados; país de emigração para os “retornados” que nunca tinham partido. Na
escola os colegas vinham de todos os sítios: de França ou da Alemanha, tinham
nascido em África, porque os pais tinham estado lá na guerra ou viviam em
África e de lá tinham vindo, o que os fazia vibrar com a independência de
Angola ou de Moçambique e, contra a vontade dos pais, traziam a bandeira dessa
terra que confusamente diziam também ser a deles, recusando assim o Portugal
atrasado que nós para eles representávamos, mas comungando connosco da vida à
solta que então se vivia. Na escola e em casa a revolução estava em marcha: os
nossos pais adormeciam capitalistas e acordavam nacionalizados, viviam em
intermináveis reuniões e à noite ainda íamos com eles a constantes sessões de
esclarecimento, de onde toda a gente voltava a discutir imenso quebrando-se
assim, no nosso entendimento, o propósito da ida; na escola, à semelhança dos
adultos, organizávamos também a nossa revolução, com as Assembleias Gerias de
escola, as nossas sessões de esclarecimento e as nossas campanhas pelo A ou
pelo B, com vista à eleição dos nossos representantes. Recordo desses tempos o
ambiente de debate que dominava a sala de aula, os nossos malogrados cultivos
agrícolas no que tinha sido o jardim da escola, os Estudos Sociais em vez da
História, Fernão Mendes Pinto em vez de Camões, os trabalhos sobre Karl Marx ou
Engels, a ânsia dos professores em nos darem tudo aquilo a que não tinham tido
acesso, em nos educar como cidadãos responsáveis e democratas, capazes de, como
os nossos pais, apaixonadamente discutir tudo. Como mais tarde me esclareceu
Eduardo Lourenço, em O Labirinto da Saudade, nessa época Portugal
estava em discussão. Eu, tinha sido testemunha.
Pensar esse Portugal em discussão, a partir de Eduardo Lourenço e sob a
metáfora do regresso, não só português, mas também europeu, tornou-se o objecto
do meu trabalho inicialmente acompanhado por dois académicos que tinham partido
do Portugal salazarista por razões políticas e que, em meados dos anos 90,
continuavam em Inglaterra, agora por opção.
Com eles
aprendi a, como Eduardo Lourenço, olhar de fora o meu país e a questionar tudo,
nomeadamente a espessura de séculos dessa metáfora do regresso: Helder Macedo,
atento e rebelde leitor de Eduardo Lourenço e Luís de Sousa Rebelo, irmão de
geração do ensaísta. Pela mão de Camões, como não podia deixar de ser sob a
égide de Helder Macedo, comecei a questionar essa história de regressos, que
nos compõe e nos explica como nação que ao longo dos séculos pelo império
imaginou o centro, que Camões nos atribuiu no poema épico. Aí, no momento épico
da partida para a viagem que traria o império, tão angustiadamente narrada, tão
cheia de dúvidas e incertezas7, começa a tecer-se o labirinto da saudade que
Eduardo Lourenço evoca para no pós-25 de Abril de 1974, repensar Portugal». In
Margarida Calafate Ribeiro, Uma Outra
História de Regressos: Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa, Centro
de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Cátedra Eduardo Lourenço,
Universidade de Bolonha, Instituto Camões, Dezembro de 2007.
Cortesia
de Instituto Camões/JDACT