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Os Precursores de Vasco da Gama
«O mesmo dogmático despotismo, que trazia encadeados os ânimos na
esfera espiritual, tolhendo ou encurtando o voo aos pensadores menos submissos
ao jogo da tradição, imperava geralmente, enleando o entendimento e a razão nos
domínios do saber. Os assertos de Ptolemeu ou de Aristóteles tinham na ciência
e na cosmografia tão inconcussa autoridade, como nas doutrinas teológicas os
textos da escritura, as sentenças dos santos padres e as decisões da igreja
universal. A fé em certa maneira se humanizava nas escolas e na forma de
teologia convertia-se em ciência filosófica.
A ciência, por um processo contraposto, por assim dizer, divinizava-se,
e sob o fanatismo aristotélico, transmudava-se em fé religiosa. O que o mestre
definira passava por lei inquebrantável. A ciência fatigava-se e consumia-se a
glosar, a inquirir e não raro a desfigurar por subtis, engenhosas, mas estéreis
comentações o venerando texto da antiguidade. Era então a elaboração
intelectual da Idade Média como se fora uma perpétua ruminação, uma segunda
digestão em novo estômago, como de faminto dromedário, que em meio de arenosa e
seca praga, sem uma fibra sequer da planta mais rasteira, está enganando a
fome, que o devora.
Alguns espíritos, que se arremessavam com mais brioso ímpeto às paragens
nevoentas do futuro, ousavam algumas vezes deixar a trilha habitual, e
emancipando-se do tirânico jugo dos antigos, mal interpretados e entendidos,
podiam rastrear que fora dos tratados de Aristóteles havia a natureza genial,
verdadeira, inexaurível, e além das tábuas geográficas de Ptolemeu uma terra
muito diferente da que ele fantasiara e descrevera. Roger Bacon é porventura em
todo este crepúsculo matinal da inteligência, que apelidámos Idade Média, quem
mais alto voejou acima dos erros consagrados. Estava porém guardada para séculos
mais lúcidos e mais perscrutadores o trocar os dogmas canonizados da antiga ciência
geográfica pelo conhecimento experimental, pela directa interrogação da
natureza, e pela condenação das erróneas tradições, que trouxeram por longos
tempos algemada a ciência e a razão da humanidade.
O século XV constitui a passagem progressiva dos tempos medievos para a
nova idade na Europa civilizada. É a quadra, em que a europeia cristandade, depois
de lastimosas convulsões, tem chegado à adolescência e maturação, despindo lentamente
a cortiça da barbárie. Estão já constituídas em grande parte as modernas unidades
nacionais pela vistoria dos imperantes contra a anarquia social do feudalismo. Desaparece
para sempre, como quem é já de mais no organismo da cristandade, o caduco
império do oriente, a extrema e degenerada relíquia da antiga. sociedade
greco-romana. E para contrapesar a irrupção dos muçulmanos nas extremas
orientais da Europa com as hordas invasoras de Maomé II, deixam de brilhar
pouco depois, ao sol brilhante das Espanhas os crescentes, outrora triunfais e
conquistadores, nos minaretes e nas mesquitas de Granada.
Este século XV representa para com o seguinte, que
é a culminação da Renascença, a mesma função admirável, que na evolução da humanidade
competiu ao XVIII século, como portada e frontispício da idade nossa contemporânea.
Foram ambos assinalados por larga e profunda elaboração, como que trabalhoso
noviciado e preparação para os brilhantes estados sociais, que vieram distinguir
as idades subsequentes. Assim como Watt e a primeira máquina de vapor aplicável
aos usos industriais foram os gloriosos precursores da prodigiosa civilização do
século presente, assim também a fecunda invenção de Fust e Gutenberg prenunciam
a nova época das ciências e das letras no esplêndido florir da Renascença». In Latino Coelho, 1882,
Vasco da Gama, Bertrand Editora, Lisboa 2007, ISBN 978-972-25-1614-3.
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