terça-feira, 29 de maio de 2012

Um génio da Língua e da Literatura: Gaspar Pires Rebelo. Nuno Júdice. «Todos estes aspectos fazem de Gaspar Pires Rebelo um dos grandes autores da Língua Portuguesa, em particular no brilho com que domina a subtileza conceptual, equilibrando-a de forma articulada, num sábio jogo de luz e sombra, com a arte de contar»


Cortesia de wikipedia

«Mas vemos, ao mesmo tempo, que a escrita se apura da 1.ª para a 2.ª parte; e onde, no primeiro livro, há ainda um peso da retórica moralista e da formação religiosa, a 2.ª dá-nos uma abertura para o mundo profano, usando o expediente camoniano do paralelo com a mitologia. O seu interesse por Virgílio reflecte um gosto comum a outros contemporâneos seus: João Franco Barreto, nascido em 1600, traduz a ‘Eneida’, publicada em duas partes em 1664 e 1670. Barreto foi presbítero na vila do Redondo até 1648, não sendo impossível que se tenham encontrado ou ao menos ouvido falar um do outro, dada a proximidade em que o Redondo se encontrava de Castro Verde. Também na pintura os motivos da guerra de Tróia são amplamente utilizados na época, como se pode ver nos quadros de um outro seu contemporâneo, Diogo Pereira (morto em 1658).Tudo isto resulta, assim, numa irrupção esplêndida da Antiguidade como fonte de inspiração para os episódios que ganham em força trágica e em originalidade. Este lado ‘antigo’, é visível também no gosto pelas ruínas. A ruína não é, porém, um simples cenário de destruição, mas um espelho de ensinamento em que, no processo descritivo, é apresentada uma herança que se manifesta na mensagem alegórica das figuras que se distribuem pelo espaço arquitectónico. Há, por isso, uma recuperação do passado em todas as suas vertentes, desde os Gentios aos pagãos, dando uma abertura em que se manifesta o humanista, contrariando o peso censório da Igreja pós-tridentina.
Todos estes aspectos fazem de Gaspar Pires Rebelo um dos grandes autores da Língua Portuguesa, em particular no brilho com que domina a subtileza conceptual, equilibrando-a de forma articulada, num sábio jogo de luz e sombra, com a arte de contar. Podemos, por isso, dizer sem qualquer receio de exagero que ele é, no plano Ja literatura de imaginação, o equivalente ao Padre António Vieira (e, tal como Vieira, Rebelo é referido como um dos grandes pregadores religiosos do seu tempo, o que se pode comprovar pela prática que o Ermitão faz a Leandro no capítulo XXVII da Primeira parte).
Perguntar-se-á por que motivo não consta o seu nome, em geral, das nossas histórias literárias, a não ser como quase minúscula referência de rodapé? Duas razões se podem apontar, para lá do nosso desleixo crónico em relação ao passado:
  • o facto de ter vivido sob o período filipino;
  • sobretudo a sua inscrição na prosa de ficção barroca, tão desconsiderada como simples jogo formal.
Vive, além disso, num período que Francisco Rodrigues Lobo caracterizou como sendo de ‘corte na aldeia’. A perda da independência, e o facto de nenhum dos Filipes se ter instalado em Lisboa, vai desenvolver esses núcleos regionais de vida cultural em torno de famílias nobres, o marquês de Vila Real, em Leiria, onde vive Rodrigues Lobo, o duque de Bragança em Vila Viçosa, entre muitos outros, não sendo de excluir que Pires Rebelo tivesse frequentado ou fosse o centro de um desses círculos.
É ele, porém, um dos nossos autores em que de modo mais claro e, poderemos dizê-lo, consciente, se encontra a marca deste nosso século barroco, vigente de 1580 a 1680 no mundo hispânico, segundo Fernando de la Flor, com as suas duas características nucleares que são a ‘determinação niilista’ e ‘uma arte e uma literatura da caducidade’. Com efeito, é no ‘teatro da morte’, que é o cadafalso erguido para a execução de Florinda e Arnaldo, que termina o esplendor da aventura amorosa; e é nesse instante, em que chegou ao fim a aventura trágica, que a ‘malencolia’ atinge o seu auge na desencantada constatação final de Arnaldo de que ‘não tem fundamento a seguridade dos bens do mundo’». In Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, Nuno Júdice, Teorema, Lisboa, 2005, Fundação C. Gulbenkian, HALP, 2005.


Cortesia de FCGulbenkian/JDACT