sexta-feira, 4 de maio de 2012

Leal Conselheiro. D. Duarte. “Por que os amores fazem mais sentimento no coração que outra benquerença”. «… que tristeza nunca sentiria, o que é tão errado pensamento como bem demonstram muitos exemplos, os quais não quer consentir que se creiam, posto que claramente de demonstrem, pensando que nunca semelhante como ele sentiu que o contrário pudesse sentir…»


Cortesia de purl

«D. Duarte (1391-1438) nasceu em Viseu. Era filho do rei D. João I, Mestre de Avis, e de D. Filipa de Lencastre. Foi o décimo primeiro rei de Portugal e o segundo da segunda dinastia, tendo ascendido ao trono com a morte de seu pai em 1433. D. Duarte foi um rei dado às letras, tendo fomentado a tradução de autores latinos e italianos e organizando uma importante biblioteca particular. Ele próprio nas suas obras mostra conhecimento dos autores latinos». In História de Portugal.

LEAL CONSELHEIRO

Por que os amores fazem mais sentimento
No coração que outra benquerença

«Os amores no coração fazem mais rijo e continuado sentimento que outra benquerença, por estas razões:
Primeira, por a contrariedade do entender que os contradiz, mostrando de uma parte quanto mal por eles se faz, defendendo que se não faça, e doutra o desejo que muito com eles reina, requerendo com grande afincamento que persevere no que há começado, fazem uma porfia que continuadamente dá grã pena de espírito, afã e cuidado, do que mui amiúde os namorados se queixam, a qual se não pode passar sem rijos sentimentos.

Segunda, porque rijo, desordenado e continuado desejo, ciúmes e vanglória fazem no coração grande sentimento. E porquanto estes reinam mais com amores que com outra benquerença, porém fazem maior sentido.

Terceira, porque assim como dizem as cousas costumadas não fazerem tanto sentir, por esse fundamento aquelas que se abalam convém que o acrescentem. E pois que os amores nunca dão repouso por fazerem contentar de mui pequeno bem, assim como de uma boa maneira de olhar, gracioso rir, ledo falar, amoroso e favorável jeito, e de tal contrário se assanham, tomam suspeita, caem em tristeza, filhando tão rijo cuidado por uma cousa de nada, como se tocasse a todo seu bom estado, que o não deixa enquanto dura pensar em al livremente, mas como aquele que tem véu posto ante os olhos vê as cousas, dessa guisa ele pensa em todas outras fora do seu fundamento por cima daquele cuidado que lhe faz parecer todas as folganças nada, não havendo aquela que mais deseja. E se a cobrasse, que tristeza nunca sentiria, o que é tão errado pensamento como bem demonstram muitos exemplos, os quais não quer consentir que se creiam, posto que claramente de demonstrem, pensando que nunca semelhante como ele sentiu que o contrário pudesse sentir, o que adiante as mais das vezes se demonstra mui desvairado do que parece.

E por aqui se pode bem conhecer, posto que não caia em outro erro, quanto perigo é trazer um tal cuidado assim reinante em ele, que o não deixe pensar em cousa livremente sem haver dele lembramento, e como constrangido cuidar em qualquer outro feito por pesado que seja, para o coração no que tais amores lhe mandam quer embargar seu sentido, desamparando todos os outros por necessários que sejam. E por estas razões convém que traga e faça maiores sentimentos que outra maneira de amar.
A boa amizade de entre marido e mulher e outros verdadeiros amigos disto sentem o contrário, porque, quanto ao primeiro, não passam tal contrariedade de entre o entender e vontade, porque ambos são dum acordo; quanto praz ao coração de amar, tanto assim julga o entender que é bem de se fazer.
Ao segundo, desejo rijo não sentem, porque vivem em deleitação e contentamento; tais ciúmes não devem haver por a grande segurança que um do outro, sem algum temor, sempre tem. Se disserem que muitos casados que muito se amam têm ciúmes, respondo como já disse que o amor dos casados participa com todas maneiras de amar. E quanto mais é sobre amores por desejo de coração que por conhecimento de virtude segura de ambas as partes, a qual se requer na real maneira de amizade, os semelhantes senti-los-ão, porque ainda que muito se amem, não chegam a verdadeiro estado dos mui bons amigos, entre os quais não convém alguma suspeita de erro ou falecimento que um em contra do outro a seu cinte jamais nunca faz, nem quererá fazer, antes vêm muitas da condição revessada de cada um ou falecimento de bondade e de boa vontade que no outro vê ou suspeita.
Mas entre aqueles casados que esta mui perfeita maneira de amar afirmada por grande experiência bom conhecimento que um do outro tem havida, os ciúmes são de todos escusados ou tão levemente sentidos que a cada um não fazem alguma torvação ou empacho». In João Morais Barbosa, IN-CM.

 
continua
Cortesia da IN-CM/JDACT