terça-feira, 8 de maio de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo. «Foi com muito esforço que tive de me atrever a apresentar-lhe o recibo da conta daquele primeiro acto. Onde é que iria parar aquele entusiasmo transbordante, quando eu lhe dissesse o custo daquela comprinha, pensei com os meus botões. O Garcia, […] lá disse ao Tio Manuel que agora tinha que pagar ao Estado aquela importância do recibo amarelo»



jdact, cortesia de laureanoribatua e armandapassos

«No corredor, pensei que tinha que orçar o tempo que me restava daquela manhã, fadada para as saudações, quando, de repente, me confrontei com uma placa identificadora da Repartição de Finanças. Sustive uns segundos, a ver no pulso, o relógio e, a medo e com timidez, entrei. Havia um balcão corrido, mais pequeno que o que tinha deixado atrás, momentos antes. Olhei, este era de madeira mais grossa, de nervuras bem à vista, polidas pelos cotovelos e braços dos que se sustinham ali, no cumprimento honroso dos seus deveres fiscais. Estava um ror de gente, de dianteira a mim. Enquanto aguardava a minha vez, distraí-me a ver se aqueles desenhos e aquelas elipses na madeira eram veios de cerne, de pinho ou de castanho.
Logo que uma clareira se fez no balcão, a ele me cheguei, para ser visto e notado pelos atendedores, que conversavam entre si, num cavaco desenfreado, de sisas e prediais. Metido comigo e contido de implosão, ia acompanhando aquele discurso tributário, contente de entender aquelas discussões técnicas, de que eu tinha bom conhecimento. De repente, um daqueles fiscalistas, estranhando a minha cara desconhecida, levantou-se, perguntando-me se eu pretendia alguma coisa. Respondi que era o novo vizinho de baixo, do rés-do-chão, que era o notário acabado de chegar e que queria apenas apresentar cumprimentos aos vizinhos de cima, que eram eles, excelências. Levantaram-se todos e, com o ar mais familiar e acolhedor do mundo, fui recebido. Os cumprimentos multiplicaram-se e achei que ia ter, em cada um, um amigo.
Granjeado de simpatias e da honraria daqueles suaves e bem sabidos respeitos, e daquele acolhimento de família, veio-me à mente o meu primo, chefe de Finanças que foi, e que os meus pais educaram, como se fosse o meu irmão mais velho e de quem me via ainda ao seu colo, onde muitas vezes adormecia.
Desci do primeiro andar, por uma escada larga em dois lanços, que desembocava numa outra externa de granito, onde me deparei com um sol regaladamente musical.

Tomada a posse, titulada juridicamente a minha actividade, dei comigo a dar fé pública a um contrato de venda de uma parcela de terreno, que era um destaque de uma courela que o vendedor dava, contra preço simbólico, ao comprador, humilde no comportamento e na renda da jorna. Compadeci-me daquele outorgante, tão orgulhoso daquela compra, tão contente daquela sua situação de comprador, que me olhava com o ar de maior satisfação do mundo, a mim, notário que lhe garantia o formal daquela escritura, a comprovar os papéis passados, com que ele podia começar a construir a sua pequena cabana, como fervorosamente me confessava.
Foi com muito esforço que tive de me atrever a apresentar-lhe o recibo da conta daquele primeiro acto. Onde é que iria parar aquele entusiasmo transbordante, quando eu lhe dissesse o custo daquela comprinha, pensei com os meus botões.
O Garcia, matriciado já naquelas tarimbas, lá disse ao Tio Manuel que agora tinha que pagar ao Estado aquela importância do recibo amarelo. Ao contrário do que eu esperava, pacientemente, rapou da carteira abaulada que trazia no bolso de trás das calças e entregou três papeletas de mil escudos, recebendo de volta a demasia, isto é, o troco.
E, alegre e contente, descoberto do chapéu, solicitou com a sua mão rude a minha, apertando-ma, com um vigor ainda hoje sentido.
Encontrava-o depois, de vez em quando, o que para mim era a lembrança do primeiro trabalho no cartório. Haveria de, sempre, lhe dar uma atenção especial, quando o via, à descida de Marvão, a caminho da sua casa, na Ranginha.
No fim da primeira manhã de trabalho, enderecei convite ao Garcia para me acompanhar a Castelo de Vide, para lá arranjar alojamento, já que aquele era demasiado escuro e atroado pelo relógio da torre. Não querendo ouvir o que eu estava a dizer, chamou-me à atenção que era uma ofensa que eu ia fazer a Marvão, alegando que, entre as duas Vilas vizinhas, nunca tinha havido entendimento, informando-me, para meu juízo, que o dia de feriado municipal de Marvão era o da data do restabelecimento do concelho de Marvão, que, durante várias décadas, fez parte do concelho de Castelo de Vide». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

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Com a amizade de JCM
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT