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O
Poeta do SÓ
«A ciência
trazia então como escopo despir a vida de todos os altos atributos que a poesia
e a religião lhe haviam emprestado. Ficava um ermo a existência. O homem
reduzia-se à proporção do bípede vulgar, descendente do símio. Murchavam ao seu
hálito os hortos do sonho. Secavam-se as fontes e mirravam-se os pomos da
idealidade, e não mais, portanto, as almas insatisfeitas teriam onde mitigar suas
fomes e sedes.
E,
então, a de Anto, que pela sua condição de “excepcional”, mais sôfregas e
ardentes sentia essa fome e essa sede de ideal, como poderia subsistir
doravante? Se os seus pulmões se não tivessem tão cedo, ou mesmo nunca,
desfeito em sangue, é possível, lógico mesmo, que a sua “maneira” tivesse
evoluído, afastando-se dos extremismos subjectivistas, fatais no primeiro ciclo
de todos os Artistas, ascendendo a uma objectividade mais serena e desentranhando,
assim, do seu estro potente e magnífico mais dois ou três volumes de belos poemetos.
Teria deste modo deixado completo o seu lindo poema “O Desejado”, tão imbuído de
sentido pátrio. Mas isso não bastaria para o acorrentar, resignadamente, à vida
coeva, chan e baça. A imperfeição das coisas e dos seres postos à sua beira,
num contacto forçado e quotidiano, imperfeição inconvertível ao influxo da sua
vontade, imperfeição tornada orgânica e fixa, e que, para mais, não só lhe
afrontava a sensibilidade delicada, como até lhe penetrava o espírito,
contagiando-o da sua fealdade, manchando-o, apoucando-o, havia sem dúvida de lhe
desenrolar o cruel dilema: ou se integrava na vida mesquinha, amesquinhando-se,
é bem de ver, ou seria impiedosamente triturado na sua bárbara engrenagem. E não
será de presumir antes a sua intransigência de que a sua rendição?
Acrescente-se a estes motivos de desgosto pela existência ainda uma outra
condição, também fatal na maioria dos verdadeiros Artistas. O aparecimento de
antimonias, umas vezes entre a sua saúde e a sua ânsia de correr aventuras,
esta forte, aquela débil, outras vezes, as mais, entre o espírito suave e cheio
de requintes que lhes abala o peito e a sociedade em que o seu destino os põe a
viver. E começa então, feroz, despedaçadoramente, o pleito entre os
contendores, pleito que finda sempre pela derrota sangrenta dos Artistas, que
na sua especial natureza de ser encontram, não um auxiliar, mas sim um inimigo
mais a corroer-lhes o aço das suas cotas de armas, pouco a pouco rendendo os
inermes e exaustos à truculência do inimigo externo. Esteve António Nobre
sujeito a esta condição, todos o sabem. Paradoxalmente, mesmo os da sua roda,
literatos como ele, que se sentiam atrair irresistivelmente pela originalidade
do seu talento, não deixavam de acidular com despeito e inveja a sua admiração.
Em
Coimbra, os lentes reprovaram-no dois anos e os condiscípulos regozijaram-se
sem rebuço com estes seus desastres nos estudos oficiais.
Teve
de desertar e ir fazer o curso a Paris, E foi sempre assim, enquanto em vida,
por toda a parte onde passou. Queriam ajustá-lo à craveira vulgar, Excedia-a?
Apedrejavam-no. Faziam-lhe pagar caro o prestígio do seu estro, o encanto que
de si emanava, o poder pessoal de que impregnava todos à volta.
Por
isso, ainda os que mais ou menos com ele tinham afinidades, não hesitaram em bandear-se
com o vulgo, para a vingativa conjura. Sabendo-o ávido de companhias
reverentes, afastaram-se dele, fizeram-lhe em torno o vácuo e o silêncio, no
intento criminoso de o matarem à míngua desse sagrado pão que era indispensável
à sua alma a simpatia. E conseguiram-no.
Couraçava-o
ferreamente o orgulho, mas a violência dos ataques excedia a fortaleza da
couraça. Num dado momento sentiu-se perdido, derrotado, sem um arrimo sequer,
louco
Sebastião
batalhando entre a chusma de infiéis, apenas seguido do seu agoirento aio, o
tédio.
Nem
uma das suas quimeras soubera persistir em acompanhá-lo até a morte,
denodadamente. Transidas de cobardia, deixaram-no, a distância bastante da
linha de batalha. E quase o viram cair, trespassado, exangue, sem soltarem
piedosamente um grito, um ai, um soluço. Até o Amor, o condestável dos Poetas,
se rendeu bem cedo. Culpa de Anto? Talvez. Quis demais.
Debruçou
sempre a sua alma nos olhos das mulheres com a mira de ver o céu, quando não é
essa a paisagem, mas sim a da volúpia, para onde essas janelas encantadas olham
“A Purinha”, essa miragem maravilhosamente linda, exprime bem o seu sonho
romântico e errado de buscar anjos na terra, seres sobrenaturais com belezas célicas
e virtudes de milagre. Por isso, o Amor, não lhe podendo ofertar o impossível,
como a amizade, e como tudo o mais, o abandonou também. No ardor do combate,
animou-o apenas o ritmo forte do coração dos simples, os pegureiros e
pescadores da sua terra, em que, tal como no coração dos búzios, vago e distante,
ressoa o marulhar das ondas largas, ele escutava a grita audaz e épica da raça
lusíada de outrora.
Caiu
por fim. O seu Alcácer-Quibir foi num leito de doença. A lançada que lhe
trespassou o flanco, arremessou-lha a tísica. Reatando e repetindo: esta foi
mera comparsa na tragédia.
Coube-lhe,
por acaso, dizer a frase final. Desconsolado, traído, só, mesmo que a doença se
lhe não tivesse enamorado dos pulmões, não morreria de velho. Mais dia, menos
dia, roída a sua alma pela nevrose do talento, por essa outra incurável e
galopante
Tysica de alma…
chegaria
a hora turva em que o seu braço se ergueria à altura do peito ou da fronte,
empunhando o revólver libertador, quebrando os grilhões que o jungiam ao mundo
de misérias, descerrando-lhe em frente a Jerusalém eterna, onde habitava a sua
feiticeira noiva, de sorriso imutável e de misterioso encanto». In César de
Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa,
PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.
(Continua)
Cortesia
de Livraria Central Editores/JDACT