quinta-feira, 31 de maio de 2012

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Defendia as ordens religiosas e nada mais. Um santo procura ter em conta «o homem e a sua circunstância», como diria Ortega y Gasset. Porém, condena os erros e fustiga a Cristandade, implacavelmente, de alto a baixo. Cafarnaum quer dizer campo de fartura e quinta de recreio…»



Cortesia de wikipedia e jdact

A Sátira na Pregação do século XIII
Sermões de Santo António
«Em certas ocasiões, era um fundibulário terrível, Santo António de Lisboa. Morreu em 1236. Doutro pregador seu contemporâneo, frei Paio de Coimbra, da Ordem de S. Domingos, ficaram-nos mais de quatrocentos esquemas de panegíricos, em letra de 1250. Entre eles, figuram dois sermões em louvor de Santo António, ou Fernando, diz ele.
Apesar da violência da sua crítica, Santo António não atacava às cegas. Por exemplo, não chamou «cão danado» a Ezzelino. Em paga, é histórica a apóstrofe contra o arcebispo Simon de Sully, pouco amigo dos franciscanos: «Tibi loquar, cornute»... Eis que me vou dirigir a ti, mitrado. Em rigor, nenhuma injúria pessoal e cornute foi mal traduzido por alguns. Defendia as ordens religiosas e nada mais. Um santo procura ter em conta «o homem e a sua circunstância», como diria Ortega y Gasset.
Porém, condena os erros e fustiga a Cristandade, implacavelmente, de alto a baixo. Cafarnaum quer dizer campo de fartura e quinta de recreio, explica ele. E aqui se representam as quatro abominações da Cristandade:
  • clérigos soberbos;
  • religiosos mandriões como um «fruto gordo», roídos pelo verme da concupiscência; 
  • seculares postos na miséria, como pobres camponeses;
  • finalmente, ricos gozadores que, por conseguinte, se esquecem de Deus.
Neste por conseguinte está a condenação da riqueza transformada em prazer, condenação mais actual, agora, pela sua universalidade, do que no século XIII. Os prelados orgulhosos adoram o «ídolo do interesse», violam o corpo de Cristo e espezinham a Igreja. Os religiosos enfatuados são idólatras da soberba, da gula e da luxúria, colocando acima de tudo os amigos, sobrinhos e parentes. E estes rastejam, como répteis, a lamuriar-se. Que fazem os abades e priores das rendas dos conventos? O que lhes sobra não pertence aos pobres? A terceira abominação é a riqueza mundanal, amiga da luxúria. Quantos se lamentam hoje da prosperidade antiga! Chegam mesmo a perder a fé, portando-se como vilões. Alegrem-se!
Antes isso do que gozar das riquezas. Outros andam atrás da glória e, para a conquistar, chegam a «adorar o homem». São estes os demagogos, diríamos hoje.
Poucos fazem ideia da força espiritual destes adversários do luxo estéril, da gloríola e da vida fácil. Força espiritual e verbal. Quase todos mamam, diz o pregador, nos úberes da gula, da luxúria e da Grande Meretriz que embriaga os homens com o vinho da sua prostituição. O Menino Jesus, no presépio, jaz envolto em paninhos e não em vestes luxuosas de peles! Vestem-se com luxo pecadores e meretrizes! E até certos prelados efeminados parecem mulheres que vão casar-se! Selas pintadas, arreios e esporas de grande valia, tudo isto tem a cor do sangue de Cristo, do sangue espremido dos pobres.
Que moleza! Nas igrejas, só gostam de frases cantantes e aduladoras. No coro, «requebram a voz». Outros engrossam-na no púlpito, multiplicam as citações, torcem a Bíblia, tudo por vaidade. Acreditem-me! São mercenários, vendem-se como as prostitutas, pregam-se a si mesmos e não a Cristo. Resultado: não pescam nenhum peixe mas, sim, qualquer «rã palradora» para os gabar. E a maledicência? Ela anda pelas praças, gárrula e vagabunda, perturbando a todos sem descanso.
Que porcaria de língua e quanta imundície! As palavras não voltam à boca e temos de responder por elas. Por outro lado, temos o hipócrita, figurado pelo avestruz. Os falsos religiosos, como o avestruz, têm asas e não voam. O falcão, sim, que paira nas alturas da contemplação. Vaidosos como um pavão de penas vistosas, fazem a roda com a cauda e mostram o rabo vergonhoso. Gabam-se disto, gabam-se daquilo, e lá vão fazendo a roda e figura de parvo. A hipocrisia penetra nas casas, seduz as mulheres, engana com palavras bonitas e gemidos falsos, a ponto de ninguém a poder acusar, pois logo a defendem!
Agora, temos a gula comilona. Não espera pela hora, excita o apetite com vários molhos, mete no estômago alimento a mais, toda ela é barriga e malga. Os glutões cercam a malga como se estivessem a sitiar um castelo! E o comilão «todo ele» come, à mesa, à maneira dum cão, na cozinha, que não quer outro ao pé dele.
Passemos aos gozadores luxuriosos. Embebedam-se na taça de ouro de Babilónia, quer dizer, na riqueza. Em tais almas não entra a palavra de Deus e lembram-nos as esterqueiras apodrecidas onde nascem os quatro vermes da fornicação, do adultério, do incesto e do pecado.
Quanto à ambição, tem por figura o cavaleiro do Apocalipse, montado no cavalo vermelho. Não se aquieta, aspira a ser bispo, vai subindo sempre, até dar no Inferno. Anda em torno, simula, dissimula e rasteja de pés e mãos, para se apoderar do património de Cristo. Atrás, segue a discórdia, nascem os prelados simoníacos e matam-se uns aos outros, como se fossem ladrões. Matam-se dizendo mal uns dos outros, murmurando baixinho ou ladrando alto. Um acusa o outro e passam o tempo em demandas, em clamores e em vexações». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Pdf, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT