quarta-feira, 30 de maio de 2012

Portugal, a Terra e o Homem. Antologia de textos de escritores do século XX. David Mourão-Ferreira. «Quem traça as extremas de cada Estado não é a geografia nem é a raça (nem tão-pouco a ‘consciência nacional’ se a entendermos como consciência da nação inteira); é a impotência da classe que nele impera para estender mais longe o seu próprio mando»


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«E não bastaria, por outro lado, mostrar um contraste de feições geofísicas entre o território que a Portugal pertence (suposto uno) e o da restante Ibéria (suposto uno) para que nos fosse lícito considerar tal contraste como causa geográfica da independência política: seria necessário, além disso, que “percebêssemos” como actuava essa relação causal, isto é, que intuíssemos uma relação de dependência efectiva entre o segundo fenómeno e aquele primeiro. Se acaso demonstrássemos que de dois irmãos, um deles foi alto e de cabelos loiros, e o outro baixo e de cabelos castanhos, não teríamos provado que é por este facto que os dois seguiram profissões diferentes, não trabalhando ambos (ponhamos de exemplo) na casa comercial que herdaram do pai: porque não enxergamos uma relação “inteligível” entre a diferença das estaturas dos dois indivíduos (ou da cor dos cabelos) e a diferença das profissões que vieram a ter.
Mas há mais. Na base ou origem dessa explicação geofísica vislumbra-se uma hipótese que não é nada evidente, a saber: a de que a homogeneidade do território de um certo Estado é circunstância favorável à autonomia dele. Por que é que o seria? Não se percebe aí a relação causal, e é indispensável que a relação se perceba, isto é que seja “inteligível” a causalidade afirmada. Pelo contrário: entende-se que a verdade seja a concepção oposta: a de que há vantagem, para a independência de um povo, na “não-homogeneidade” do seu ambiente geográfico, na posse de territórios de naturezas diversas, já que estes apresentam, pois que são diferentes, capacidades de produção complementares entre si, ministrando-lhe um deles o que lhe não dão os outros.
Quem traça as extremas de cada Estado não é a geografia nem é a raça (nem tão-pouco a ‘consciência nacional’ se a entendermos como consciência da nação inteira): é a impotência da classe que nele impera para estender mais longe o seu próprio mando, à custa da classe dominadora dos territórios vizinhos dos que tomou para si. Em toda a Europa da Idade Média, os novos Estados que se então formaram nos parecem produtos da vontade dos chefes e da classe guerreira que os acompanhava, sem base racial, ou nacional, ou tribal. Não contestamos, por pensarmos assim, que venha a formar-se nas classes mais pobres o que se chama uma ‘consciência nacional’, se bem que julguemos, por nossa conta, que tal ‘consciência nacional’ do povo, em não poucos casos, tem menos realidade do que nos fazem crer, e que a ideia de nação, frequentissimamente, mascara interesses de diversa ordem (o rei Luís, andando no mar, veio um dia à fala com embarcações de pesca, e perguntou aos homens se eram portugueses; ‘nós cá, - não senhor’, lhe responderam eles: ‘nós somos poveiros’; passava-se isto no século dezanove: que seria no dezasseis, ou no catorze?); sem contestarmos, por consequência, que se forme uma ‘consciência nacional’ no povo, supomos que é a classe que domina este quem cria a Nação através do Estado, e portanto as fronteiras do mesmo Estado. Por isso aventamos esta nossa hipótese de que o perímetro raiano em que Portugal se inclui foi de início o limite do poder de expansão da classe dominante que se aqui formou: e haveremos de observar no decorrer desta “História” como é que se apresentaram nas diferentes épocas as forças políticas verdadeiramente eficazes para a manutenção da independência da nossa pátria: a vontade do rei (assistida de aristocratas e de burgueses, e dos planos políticos de Cluny) durante a dinastia de Borgonha; a vontade da burguesia comercial-marítima na crise do fim do século XIV; e os interesses comerciais dessa burguesia dos portos, os de parte, pelo menos, da aristocracia, e os dos estrangeiros inimigos da coroa espanhola, na restauração da independência contra o Castelhano (1640) e nos conflitos e negociações que se lhe seguiram. Para Oliveira Martins, vinha instabilidade à nação que nós somos de não haver fundamento ‘natural’ para ela, quer dizer: geográfico e rácico (apesar de que, contraditoriamente, nos atribuía os caracteres raciais do celta).A premissa era verdadeira, mas a conclusão era falsa: por isso que, se aqui faltam as bases geográfica e étnica, nem unidade de raça, nem fronteiras naturais, era ilusão de Oliveira Martins o supor que as havia nos demais Estados, e que às fronteiras naturais e à unidade da raça é que deviam eles a estabilidade e a força. Não residem aí, ao que nos quer parecer, as causas verdadeiras dos nossos males». In David Mourão-Ferreira, Portugal, a Terra e o Homem, Antologia de textos de escritores do Século XX, Introdução Geográfico-Sociológica à História de Portugal, ed. Sá da Costa, Fundação C. Gulbenkian, IN-CM, 1979.


Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT