sexta-feira, 4 de maio de 2012

Leal Conselheiro. D. Duarte. “Por que os amores fazem mais sentimento no coração que outra benquerença”. «… porque a abastança do que sobre elo se pode bem escrever e falar me faz não prosseguir tão grande leitura como destas maneiras de amar se recresceria; desi porque se foram bem reguardadas aquelas práticas que guardávamos ao dito Rei, meu senhor…»


Cortesia de wikipedia

LEAL CONSELHEIRO

Por que os amores fazem mais sentimento
No coração que outra benquerença

Continuação
«Vanglória não recebem, mas real e verdadeiro prazer em que os semelhantes continuadamente vivem, nem do que um pelo outro faz filha desordenado prazer, porque já tem determinado que aquilo seu bom amigo faria, mas dando graças a Nosso Senhor, confirmando-se em sua intenção e vontade se alegra temperadamente, segundo tal feito requer, nem traz cativo seu cuidado na maneira suso escrita que fazem os amores, mas livremente pensam no que lhe praz, porque tal amizade vem por especial graças de Nosso Senhor, e por sua mercê com doblez virtude se mantém. E porém não pode dar pena nem torvação, mas prazer e liberdade que vem do contentamento e segurança.
E se algum sente trabalho, ou amiúde se torva por amor que tenha dalguma pessoa, se não é por manifesto mal, perigo ou perda que vem a ele ou a quem assim ama, saiba que tal amor é por desordenada paixão ou falecimento dalguma das partes, e não de amizade que por virtude, acordo de razão e bom entender de ambos convém ser confirmado, os quais sem causa direita não dão nem consentem padecer, por assim amar, suspeita, nojo, tristeza ou algum empacho, nem cativamento de cuidado, mas outorgam liberdade. E ainda para todas cousas direitas na boa andança, e contrária, segundo diz Túlio, tanto dela nos logramos, e para tantas cousas, como da água e do fogo. E porém, ainda que os amores tragam os sentimentos suso ditos e façam obrar por eles cousas mui revessadas, não se creia porém que com eles mais amam, porque o verdadeiro amor com benquerença e vontade de bem fazer mais está na direita amizade ca em eles, cujo fundamento, como disse, é um desordenado desejo de ser benquisto e cumprir vontade por continuada afeição, sem outro regimento de bom entender nem virtude. E se me disserem que todos não são tais, eu sei bem que é verdade, porque alguns se misturam com a maneira da amizade, como fazem os bons casados ou que razoadamente esperam de ser, e alguns poucos que sempre querem guardar virtude, mas daqueles que digo que nascem de sandeu desejo, sem bom fundamento, os quais são muito para deles guardar, olhando aquele exemplo do Rei Salomão que já disse, e outros semelhantes que cada um dia se passam.
Disto mais não perlongo, porque a abastança do que sobre elo se pode bem escrever e falar me faz não prosseguir tão grande leitura como destas maneiras de amar se recresceria; desi porque se foram bem reguardadas aquelas práticas que guardávamos ao dito Rei, meu senhor, cuja alma Deus haja, que adiante vão escritas, se pode ver alguma parte do que delo entendo. Mas aquesta pouco escrevi, porque me parece que não hão muito delas bom conhecimento, e algum parte por isto que escrevo o poderão haver. E se virem os livros que dela tratam, e aquela maneira de nosso serão mais cumpridamente avisados.
Porém dou este avisamento que não pense algum que possa bem achar pessoa tão perfeita para amar que seja fora de todos os falecimentos, e em virtudes, condição, maneira de viver, linhagem, idade, acordamento de vontades e boa disposição, mas onde o principal bem está, as pequenas mínguas devem ser tão escurentadas que se não sintam, ou pareça que não queriam que se mudasse, duvidando de perder alguma cousa do principal que mais prezam.
Isto se deve fazer como faz Nosso Senhor, que posto que a direita carreira da perfeição seja tão estreita, que por mui poucos é seguida, porém vendo bom propósito e tenção todos traz a porto com saúde, dizendo que por muitos caminhos o podemos servir. Cada uns com aspereza e rigor lhe fazem serviço, porque a isto por sua natureza são inclinados, os quais usam dela com tal temperança que poucas vezes falecem, e muitas bem obram, o que outros não poderiam nem saberiam assim fazer. E semelhante fazem alguns com brandeza, buscando assim boas maneiras em tudo quanto fazem, que são servidos, obedecidos e temidos de tal guisa que castigam, emendam e corrigem como se ásperos fossem, e muitas vezes mais certo e seguramente, como fazem as cordas de lã, posto que brandas pareçam, que não deixam bem de atar. E assim das pessoas que amamos, pois homens e mulheres são, perfeição não busquemos, mas sejamos contentes do razoado com lealdade e boa vontade. E não filhemos que melhor ama quem mais sente, como fazem os namorados, mas aqueles que mais realmente mantêm e guardam as boas leis da amizade, o que se não pode bem conhecer sem perlongar conversação em feitos desvairados, por os quais se diz que se convém comer com alguém, ante que o bem conheçam, um moio de sol. E como isto deve ser entendido, no capítulo adiante escrito se declara». In João Morais Barbosa, IN-CM.


Cortesia da IN-CM/JDACT