quarta-feira, 2 de maio de 2012

José Mattoso. As Três Faces de Afonso Henriques. «É curioso comparar a “Gesta” com o “Relato da conquista de Santarém”, um texto latino ainda da mesma época, redigido na primeira pessoa e em nome do rei, e do qual resulta uma imagem que se aproxima, tirando os excessos, da fornecida por aquela»


jdact

In Memoriam de JLT

«Aqui nada se encontra, pois, de parecido com a perspectiva clerical dos “Annales domni Alfonsi”. Afonso Henriques tinha obrigações para com os nobres e as comunidades concelhias e devia cumpri-las sob pena de subverter a ordem estabelecida, escapou em S. Mamede, a uma humilhante derrota, não por seus próprios méritos mas em virtude do auxílio que no último momento lhe trouxe um nobre, Soeiro Mendes. Segundo este texto, não devia absolutamente nada ao clero e não hesitava em tratar brutalmente o legado do papa; arrogava-se o direito de nomear ele próprio um bispo, sem consultar nenhuma autoridade eclesiástica e sem se preocupar com a sua cor negra (referência provável, mas já obscurecida por um conhecimento vago da questão, à sua origem moçárabe). O mesmo texto procura explicar a sua derrota por ele ter cometido uma espécie de infracção sacrílega ao agredir a sua própria mãe, o que é apresentado muito mais como o comportamento do herói que ousa sair fora dos caminhos convencionais comuns a todos os homens do que propriamente como castigo de uma acção moralmente reprovável.
O texto parece estar incompleto. António José Saraiva admite, provavelmente com razão, que relatasse com algum pormenor a batalha de Ourique, resumida em breves palavras na versão que hoje possuímos e omitida pelos clérigos que no século XIV copiaram a versão já escrita. É possível que lhes parecesse um relato demasiado diferente do que era dado pelos escritos latinos do género dos “Annales”. Mas já então se relacionava a batalha com o escudo heráldico do rei, onde figuravam as cinco quinas; e depois a batalha nos campos de Ourique e venceu-a:
  • E de ali em diante se chamou el-rei Afonso de Portugal e entom tomou por armas as cinco quinas.
De qualquer maneira, para os cavaleiros que tinham sucedido ao bando outrora comandado pelo rei, era evidentemente muito mais exaltante sublinhar as suas capacidades militares, o seu aspecto humano, os seus excessos e a sua rude independência para com os poderes clericais do que sobre-humanas virtudes morais que não lhe conheciam e uma submissão ao clero que não podiam aceitar.
É curioso comparar a “Gesta” com o “Relato da conquista de Santarém”, um texto latino ainda da mesma época, redigido na primeira pessoa e em nome do rei, e do qual resulta uma imagem que se aproxima, tirando os excessos, da fornecida por aquela. Ao chamar os seus companheiros “comilitones mei”, ele aparece como verdadeiro chefe de um bando de cavaleiros e mesmo como um camarada. O relato representa, certamente, a memória pelo menos de um dos antigos combatentes que professaram em Santa Cruz e que recordavam também as virtudes militares do seu chefe em termos mais moderados do que os do hipotético jogral autor da “Gesta”, intérprete dos camaradas que haviam ficado no mundo e insistindo mais nas suas vitórias do que nas suas trágicas derrotas (36)». In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa, ISSN 0871-7486.

Cortesia de Edições Cosmos/JDACT